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Localização: Lisboa, Portugal

Sou uma mulher transexual de Lisboa, Portugal, onde nasci e cresci. Neste espaço poderá encontrar pensamentos, reflexões e comentários inerentes à minha vida como mulher trans. Seja benvind@ ao meu cantinho.

quarta-feira, setembro 10, 2014

Segredos e mentiras

Ao longo da minha vida fui-me apercebendo, a pouco e pouco, que não deveria ser sincera nem honesta em relação não só ao que pensava, como também ao que sentia, às razões das minhas acções, e por aí fora. Como mulher transexual, que aos 14 anos se assumiu como rapaz homossexual, coloquei-me no fio da navalha em relação a todos aqueles que me rodeavam.

Ao me assumir como aquele que eu pensava que era - e aqui entram todas as confusões, dilemas e amarguras da adolescência - quem estava mais próximo de mim acabou por virar contra mim própria esse facto, que, apesar da importância relativa (eu sentia-me e sinto-me sexualmente atraída por homens), acabava por dar armas a quem achava que me podia prejudicar por esse facto. E prejudicaram. E humilharam. E agrediram. E acho que foi aí a primeira vez em que eu senti na pele que não podia, nem devia, partilhar com os outros, fossem quem fossem, quem eu era, o que pensava e o que sentia.

Se eu dissesse algo tipo, "aquilo é giro" em relação a uma roupa numa montra, por exemplo, vinha logo a boca do "vê-se logo que achas isso porque és gay". E este tipo de atitudes para comigo vinham das pessoas mais próximas, das supostamente "não-gays". Por isso comecei muito cedo a dar-me e a tentar conhecer melhor o meio gay. Curiosamente, e apesar de não ser uma atitude geral, a maioria dos homens gay com quem me dei (e dou) foram aqueles que me aceitaram como era (apesar de eu ser muito efeminada) e quem mais me apoiou quando finalmente me encontrei e me assumi como mulher trans.

Com os meus amigos gays eu podia assumir quem era, falar sobre mim, racionalizar e objectivar as fases por que estava a passar e graças a esses poucos amigos desenvolvi em mim o desejo de me assumir como quem realmente era, apesar do medo aterrador que eu tinha de quem eu era. Obviamente que houve discriminações mesmo dentro da comunidade gay, como ainda as há hoje em dia, mas eu tinha quem me protegesse, já que eu não me sabia proteger, e houve quem se aproveitasse disso para me humilhar e agredir de todas as formas que podia.
 
 

Quando, finalmente, saí do casulo e me assumi, confesso que o fiz de forma errada e com as pessoas erradas. Primeiro, porque me abri demais acerca de mim própria, como se não existissem limites nem segredos, nem coisas só minhas. Depois, porque essas pessoas usaram o facto de eu ser supostamente diferente (inferior) a elas para me achincalharem, gozarem e espalharem aos sete ventos que eu era "a modos que assim uma coisa esquisita". Perdi as rédeas da minha vida nesse triste e terrível período. Algumas dessas pessoas afastaram-se. Outras fui eu obrigada a afastá-las e a afastar-me. O ideal teria sido criar um segredo imenso em torno do facto de ser quem sou e mentir sobre quase tudo na minha vida. Afinal é isso que a maioria das pessoas faz.

Eu poderia tê-lo feito, mas não faz parte da minha natureza. Mas aprendi alguma coisa, apesar de pouca. Aprendi a afirmar-me, a mostrar os dentes. Aprendi que os meus segredos são isso mesmo, segredos. São só meus e de mais ninguém. Comecei a omitir. Mentir não, nunca. Não tenho essa necessidade, não sei mentir, não sei ser dissimulada como tanta gente que conheço. Omito quando tenho essa necessidade, quando alguém me pergunta algo que não quero responder, algo de que não quero falar, algo que me incomoda. Mas mentir não. Nunca fui convincente a mentir e, sinceramente, odeio mentiras. Não gosto de omissões, mas socialmente sou obrigada a fazê-las.

Neste mundo em que vivemos, temos que nos proteger o máximo que pudermos. Costumam falar na "selva que isto é", mas não, é mais "a podridão que isto é". As pessoas não respeitam nada nem ninguém, a mentira é uma forma de estar na vida e os segredos na realidade não passam de pormenores de vidas vazias que se vão enchendo com as frustrações dos outros. Não aprendi a defender-me como devia. Fui uma criança crédula, divertida, alegre (pelo menos até certa altura). Na adolescência aprendi o que é ser excluída total e completamente por se "ser diferente". Na idade adulta aprendi que tenho que guardar para mim o que penso, o que acho, e principalmente, o que sinto. Tudo isto têm que ser segredos. Se não o forem, as pessoas, pura e simplesmente, afastam-se de ti.

Mas, confesso, que sou um bocado burra. Porque "errei", ou seja, abri-me a certas pessoas e elas afastaram-se. E eu fiquei triste, confusa, irritada comigo própria. Mas não aprendi. Volta e meia aqui vai disto, revelo algo que sinto a alguém e o que levo em troca? Silêncio e afastamento. Se eu tenho dificuldade em lidar comigo e com os meus sentimentos e emoções, vejo que as pessoas que me cercam ainda têm mais. Muito raramente, por exemplo, vi um blog em que alguém se abrisse como eu o faço aqui. Para o bem e para o mal, eu sei. Mas também sei que este meu espaço tem servido para dar algum alento e tem fomentado alguma empatia com pessoas que passam ou passaram pelo mesmo que eu. Só por isso já vale a pena e tenho que agradecer a quem se manifesta e me dá o seu feedback.

Segredos, mentiras, enganos e maldade. É isto que me cerca. Não só a mim, bem sei. Dizem que é um mal dos "tempos modernos". E é com tudo isto que tenho que lidar no dia-a-dia, e continuar a aprender a deixar de ser burra e a contar, abrir-me com os outros em relação a mim. Não se consegue sobreviver se não se for fria, racional e aprender a ter a boca fechada. Vão já longe os tempos em que se podia ter o "coração ao pé da boca". Sendo assim, resta-me jogar o jogo como os outros o jogam. Resumindo, ser uma verdadeira "bitch".
 
---> Na foto duas mulheres simplesmente admiráveis: Marilyn Monroe e Marlene Dietrich (foto via facebook)