Lara's dreaming

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Sou uma mulher transexual de Lisboa, Portugal, onde nasci e cresci. Neste espaço poderá encontrar pensamentos, reflexões e comentários inerentes à minha vida como mulher trans. Seja benvind@ ao meu cantinho.

domingo, janeiro 21, 2018

Cem por cento Mulher?!


Há muitos anos, e até muito recentemente, que oiço (ou leio) certo tipo de afirmações que me fazem uma certa confusão. A mais comum e sobre a qual vou escrever é: "Eu nunca vou ser (ou eu não sou) cem por cento mulher". 

Mas, afinal, o que é que isto quer dizer? O que é ser-se cem por cento mulher? As mulheres não são todas iguais, há umas mais mulheres que as outras? 

Quando mulheres trans vêm com esta conversa, o argumento delas é pura e simplesmente biológico, o que não faz sentido, nem corresponde à realidade de qualquer das formas. Baseiam-se ou na parte cromossomática, ou na capacidade de gerar filhos. 

Ter-se uma composição cromossomática XX ou XY - para não falar aqui das pessoas intersexo (com composições cromossomáticas XXY, por exemplo) - não implica que se esteja a falar de uma mulher e de um homem. Se assim fosse, estaríamos a negar a existência das pessoas trans e a fazer de conta que as hormonas que nos correm nas veias não contam para nada. Sim, porque uma mulher trans será XY e poderá ter predominância de hormonas masculinas como a testosterona, ou não - digo poderá ter, porque eu própria, como mulher trans, nunca tive um faseamento hormonal correspondente a um homem. Desde a primeira vez que fiz análises específicas para contagem hormonal, AINDA SEM fazer qualquer tipo de tratamento de substituição hormonal, que os meus valores de testosterona, por exemplo, eram idênticos a uma mulher e não a um homem. Cada mulher, seja trans ou cis é totalmente diferente de outra, não só na sua essência, mas igualmente na quantidade de hormonas masculinas e femininas que lhe correm no sangue. Isto faz diversidade, não faz de umas mais mulheres que as outras. 

Em relação a poder gerar filhos então, é uma questão ridícula. Eu sou uma mulher trans, logo não tenho um aparelho reprodutor feminino, deve ser o que elas pensam. E depois? Poder ter filhos faz de mim mais ou menos mulher que as outras? Basta ver os milhares de mulheres cis que não podem gerar um filho. Umas porque não têm útero - tive uma colega de escola que era uma mulher cis e nasceu sem útero, apesar de ter todo o resto do aparelho reprodutor, outras, como uma mulher cis muito querida e simpática com quem me correspondi durante anos, que nasceu sem vagina, tendo que, aos 16 anos, fazer uma cirurgia de correcção genital - praticamente igual à que as mulheres trans que o querem fazem. Isto faz destas duas mulheres menos mulheres que as outras? E estou a dar dois exemplos extremos. Há uma imensidade de mulheres cis que não podem ter filhos, seja por descontroles hormonais, seja por uma miríade de factores que nunca mais acaba. 

E para se ser uma mulher tem que se poder gerar filhos? Há tanta criança para adoptar, adoptem! Seria o que eu teria feito se quisesse ter um ou uma filho/a. 

Logo, e para terminar, NÃO HÁ NEM MULHERES NEM HOMENS A CEM POR CENTO. Há pessoas, seres humanos, que na sua essência são mulheres, ou são homens, ou são outras coisas quaisquer. Já chega deste discurso ridículo, patologizante e diminuidor do "ser-se mulher (ou homem, já agora) a cem por cento. Vivam sem preconceitos em relação a vocês e aos outros. A vida tem muito mais sabor assim, feita desta mistura de que todas e todos somos feitos. 

 Lara Crespo, 20 de Janeiro de 2018 - (Inicialmente publicado no Facebook)

Fotografia © Pedro Medeiros, 2014

domingo, julho 02, 2017

Marilyn e eu

Passado algum, para não dizer bastante tempo, volto a escrever aqui, no meu blog. No último ano, optei por ir escrevendo algumas coisas, poucas, no meu perfil do facebook só para amigos, pois já estava cansada dos trolls e "amigos" que gostavam muito de "comentar" os meus posts.

Hoje voltei, não sei bem porquê, mas há coisas que não têm explicação. Nem lógica, nem racional e provavelmente nem emocional. Só sei que me apeteceu escrever aqui e que um sonho que tive me despertou para a fragilidade da nossa vida e de tudo o que ela comporta.

Sonhei que eu era a Marilyn Monroe. Numa versão diferente e alienada - como em todos os meus sonhos, pelo menos - sonhei que tentava lutar desesperadamente por um sentido para a minha vida, mas nunca o encontrava. As pessoas aproximavam-se de mim pelo que eu aparentava e não por quem eu era. E eu tinha um medo louco de enlouquecer por menor sentido que isto possa fazer. E sei que era uma Marilyn morena. 



Facilmente qualquer pessoa constata que eu nada tenho a ver com essa actriz que sempre muito admirei. Fisicamente, óbvio. Psicologicamente nunca poderia falar, mas parto do princípio que somos muito diferentes. Curiosamente, nunca a vi como o ícone supremo da beleza apenas porque sim. Sabemos que ela foi um produto bem acabado de uma indústria que a esmagou e destruiu. E eu sempre me senti fascinada pela "verdadeira" Marilyn. Aquela mulher-menina tímida, de olhos tristes e brilhantes e de uma inteligência e sensibilidade enormes, ao contrário do que teimam em lhe atribuir.

Não há hoje em dia nenhuma personalidade que eu gostasse de conhecer ao vivo. Mas adorava ter conhecido Marilyn. Ter percebido o que estava naqueles olhos tristes marejados de lágrimas e o que ela realmente pensava sobre as coisas - ela própria, o mundo, os outros e por aí fora. Li várias coisas que ela foi escrevendo ao longo dos anos e identifico-me muito com o tipo de sentimentos e emoções que as coisas, porventura triviais do dia-a-dia lhe provocavam.

Ela, tal como eu fiz, entrou em auto-destruição. Não suportava viver a vida que tinha e decidiu fugir para dentro de si própria. Desleixou-se, entristeceu-se, murchou. Aqui sim, sinto-me muito identificada com ela. Sinto-me identificada com a negligência com que ela passou a tratar-se e o cansaço em relação aos outros e ao que lhe despertavam que ela mostrou sentir. Eu também estou assim. Vivi mais do que ela. Vivi uma dupla vida - não a viveu ela também? Auto-destruí-me. De uma forma diferente, mas os receios e medos assemelham-se em muita coisa. Lendo os últimos escritos dela, sinto-me a sonhar os meus sonhos de pesadelo.

Pois é. Esta noite sonhei que eu era a Marilyn Monroe. E, que tal como ela, o meu fim seria tudo menos bonito, pacífico, descansado. 

Obrigada por me lerem, para quem ainda o faz.

---> Foto de Marilyn Monroe por Willy Rizzo, 1962 (ano da sua morte)

terça-feira, julho 12, 2016

Cultura de afectos - Parte II

Apesar deste post ter o título de parte dois da cultura de afectos, acaba por ser mais uma reflexão e um recordar de situações que mostram o contrário, ou seja, os desafectos da minha vida até agora.



Sim, porque a vida é mais feita de desafecto do que de afecto. Não querendo bater no ceguinho, as pessoas preferem maltratar-se e andar constantemente em conflicto do que respeitar-se e dar espaço a que sentimentos positivos surjam e as façam viver melhor, em paz, serenidade e luz.

No post anterior falei de coisas que nunca ou raramente falo - relações (ou falta delas) familiares. Ao longo dos anos e em muitas das entrevistas que dei, a questão familiar da minha aceitação ou não como mulher transexual era colocada. E eu sempre fiz questão de não querer falar publicamente sobre isso.

Mas penso que cometi um erro. Acho que se as minhas acções foram sempre colocadas em questão e desprezadas por eles, porque os protegia eu? Eles nunca me protegeram. Eles nunca se preocuparam minimamente se eu estava bem ou mal. A preocupação era com os outros, no sentido mais subjectivo que isto tem. Mas quem são os outros e o que contribui a opinião de pessoas que nem conheço para a minha vida e para a minha felicidade? Absolutamente nada, mas como todos sabemos, a sociedade está estruturada desta forma. 

O que interessa não é o que tu és é o que aparentas ser. Eu podia ser uma mulher transexual a vida toda, desde que andasse travestida de homem e passasse por tal. Era esta a linha de pensamento deles, sublinhando que, acima de tudo, não deveria sequer falar ou expressar-me sobre isso.

Para a minha mãe, eu devia ter falado com ela quando era adolescente para que ela falasse com o meu pai e assim me puderem "ajudar". A suposta "ajuda" era internar-me para eu ser obrigada a submeter-me a um "tratamento de masculinização" para "resolver o problema". Claro que este "tratamento" deveria incluir choques eléctricos, como esteve muito em voga até quase ao final do século passado.

O meu pai estava mais preocupado com o meu "desenvolvimento físico". Durante muito tempo, já na minha idade adulta, nunca compreendi muito bem porque me começaram a surgir ataques de ansiedade e pânico em certo tipo de situações, sendo que uma delas era quando tinha que tomar um banho. Entrar na casa de banho para me lavar levava-me a tremer de cima a baixo e a entrar quase em colapso. Mais tarde as lembranças terríveis foram surgindo e revivi os momentos em que, com a conivência da minha mãe, ele entrava na casa de banho sem sequer me perguntar nada, para "inspeccionar e ver como se estavam a desenvolver os meus genitais". É a mais pura verdade. Ele aproveitava que eu estava no banho, logo nua, entrava e tocava-me para ver se "eu era normal".

Perguntei muito mais tarde à minha mãe porque ela permitiu que ele tivesse feito uma coisa daquelas ao longo de anos. Ela respondeu-me laconicamente que "não sabia de nada", o que era mentira, e mudava de assunto. Agora que ele morreu já há uns anos isto poderia não ter já qualquer importância. Mas teve. Marcou toda a minha adolescência e idade adulta na questão da minha vivência da sexualidade. Não gosto e nem permito que me toquem lá em baixo. Ajo como se aquilo nem existisse e não tenho vida sexual seja de que tipo for. Estas foram apenas algumas consequências que ficaram do que ele me fez.

Eu tinha "muito mimo" diziam eles desde que eu era pequena. É curioso falar em muito mimo quando nem atenção se dá. Muito mimo é propriamente o quê? O mimar uma criança, um adolescente ou um adulto faz-lhe mal? A mim sempre me disseram que o mimo estraga as crianças. Talvez por isso não me tenham dado nenhum. Assim evitaram que eu me estragasse, pela óptica deles. Pela minha óptica, não há nada melhor que o mimo, não há nada melhor do que mimar e ser mimado, acarinhar e ser acarinhado. Mas eu não sou eles. Felizmente.

Estas reflexões e confissões ficam aqui e só aqui. Não faço tenções de voltar a falar sobre elas. Fi-lo porque acho muito importante que as pessoas que me lêem tenham a noção de que o nosso passado pode e marca sempre o nosso futuro. Se guardo ressentimentos em relação ao que me fizeram no passado longínquo e recente? Sim, guardo muitos, todos da suposta "família" directa. Se isso afecta a minha vida? Não. Já afectou e muito, mas hoje em dia consigo conviver com isso e seguir em frente sem fantasmas e más energias de gente que não interessa a ninguém. Afinal, tal como eu, há tanta gente criada em famílias disfuncionais e estamos todos e todas aqui. 

Amanhã, logo, daqui a uma semana, um mês, anos, haverá um dia em que partirei e já não estarei fisicamente aqui. Mas ficam as minhas confissões, reflexões, pensamentos e emoções para que quem aqui vem e me leu consiga entender-me e, quem sabe, entender a vida um pouco melhor.

Obrigada por tudo. Até breve.

quarta-feira, junho 08, 2016

Cultura de afectos - Parte I

Os afectos são sempre complicados, porque vivemos numa sociedade em que não só eles não são validados, como valores mais altos se impõem.



Quando era criança, eu era muito afectuosa com as pessoas. Sempre fui uma beijoqueira e sempre gostei de fazer festinhas. Era a minha forma de mostrar aos outros que gostava muito deles e era uma dádiva minha, não esperava nada em troca.

Como não fui abençoada com pais e irmãos minimamente afectuosos, muito antes pelo contrário até, batia sempre com os burros na água, ou seja, ou era repelida, ou ignorada. Sentia-me magoada, mas não tinha consciência com o quê. Só muitos anos mais tarde me apercebi que era essa falta de carinho por parte deles que me marcou negativamente no meu relacionamento com os outros, especialmente no meu relacionamento com os homens, nos meus relacionamentos amorosos.

Nunca recebi um beijo ou um abraço do meu pai. Idem da minha mãe. Só existia um beijo de corrida quando eu fazia anos ou em situações em que "ficava mal" não demonstrarem algum tipo de afecto. Sempre fui mais próxima da minha mãe, mas ela nunca teve a capacidade nem o entendimento de me retribuir o que lhe oferecia de coração aberto. Quanto ao meu pai, foi sempre uma relação distante e tóxica. Muito cedo ele se apercebeu que eu "não era normal", e batia-me, maltratava-me e humilhava-me sempre que podia. Mentiria se dissesse que não guardo qualquer ressentimento disso, afinal ele era limitado demais para sequer entender o que se passava comigo e quem eu era. Mas não me esqueço das atitudes e palavras dele e sim, há coisas que nunca lhe perdoarei, mas isso fica para outro post.

A burrice natural da minha irmã e o facto de ter estado sempre ausente da minha vida, tirando pequenos períodos em que viveu em Portugal, nunca permitiu um envolvimento emocional, nem qualquer outro tipo de envolvimento, Foi uma irmã ausente e pouco ou nada há a dizer, a não ser que me entristeceu muito ver que uma pessoa que parecia ter potencial para ter uma mente aberta e criar laços de ternura não passava de uma pessoa limitada, preconceituosa e infeliz.

Quanto àquele que foi criado comigo e que partilha os mesmos pais e a quem eu poderia chamar de irmão, não vou escrever mais do que duas ou três linhas. É frio, calculista, desprovido de empatia (mas só comigo, pelos vistos) e é apenas a pior pessoa que alguma vez conheci na vida. Não há, nem nunca houve, qualquer tipo de ligação, emocional ou outra.

E da suposta "família tradicional" estamos falados. Depois existiam os amigos e as amigas. Com esses já existiam laços de alguma ternura e carinho, com uns mais espontâneo do que com outros. Mas foi um dia, há mais de 20 anos atrás que me foi dada a informação que me faltava: uma pessoa pela qual eu nutria um carinho e respeito especiais decidiu alertar-me para o facto de que, por eu ser extremamente afectuosa (claro que o discurso foi todo com os pronomes masculinos), ao invés de me aproximar das pessoas as afastava. Isto porque, segundo essa pessoa, "as pessoas não gostam de pessoas como tu, que andam sempre aos beijos, abraços e festas", logo "isso faz com que se afastem, por isso quase não te dás com ninguém". Confesso que fiquei elucidada e bastante bem.

A partir desse momento, deixei de ser quem eu sempre tinha sido até esse momento e passei a ser o que os outros não desprezavam (achava eu, na minha estúpida ignorância). Deixei de ser beijoqueira e os meus contactos físicos tão perniciosos para as outras pessoas passaram a cingir-se ao mínimo. Beijos só para cumprimentar e ao de leve, e apenas apertos de mão. Beijinhos, abraços e essas coisas acabaram-se. Afinal, essa pessoa até tinha razão. As pessoas não só não gostam, como se sentem extremamente desconfortáveis com demonstrações de afecto. 

Mesmo nos pouquíssimos relacionamentos amorosos que tive, beijos só como preliminares do sexo e o resto, abraços, festas, etc., resumiam-se a quase nada. 

É assim que o chamado ser humano vive e gosta de viver. Sem se dar, sem haver uma cultura do toque. Uma cultura em que o afecto não só se diz, como se faz. Eu rendi-me às evidências e segui o meu caminho. Se isso me faz sentir melhor ou pior? Hoje em dia é-me indiferente. Mas sofri muito com isso, se nos lembrarmos que eu passei mais de metade da minha vida num processo de transição como mulher transexual e a querer ser aceite pelos outros. Esta foi apenas mais uma acha para a fogueira da rejeição. Mas as regras do jogo são estas e foi com elas que eu, tarde demais, aprendi a jogar.

sexta-feira, abril 15, 2016

Respeito é muito bonito e eu gosto

Com o passar dos anos fui-me apercebendo de que, ao contrário do que pensava, uma larga maioria das pessoas que eu conheço não me conhece e me julga sem sequer ter fundamentos para isso. Isto implica o quê? Provavelmente que se essas pessoas acham que têm o direito de me julgar, seja pela minha aparência, seja pelos meus actos, seja pelo que digo e escrevo, eu também tenho o direito de as julgar a elas.

Sempre tentei ser imparcial e tomar decisões baseadas na minha intuição mais do que no meu raciocínio. Tentei nunca julgar ninguém por aquilo que essa pessoa é, aparenta, ou pelas posições que toma. Mesmo que eu não me reveja ou não concorde, cada um tem o direito ao seu pensamento, à sua expressão livre, ao seu arbítrio. Agora, a partir do momento em que essa pessoa se acha no direito de entrar na minha esfera privada e me julgar porque se acha no direito de achar que eu não sou como ela pensa que eu deveria ser ou agir, ou aparentar, não, isso eu não tolero nem admito.



Já fui muito condescendente com muita gente, o que apenas me levou a ser magoada e humilhada, principalmente por pessoas que eu pensava serem minhas amigas, em que havia um grau grande de proximidade e de respeito (pensava eu). Com o passar dos anos tornei-me menos tolerante e já não tenho paciência para a ignorância e estupidez natural destas pessoas.

Tal como eu não pré-concebo as pessoas, aceito-as como elas são, porque se acham elas no direito de fazer o oposto comigo? Estou praticamente a meio dos meus quarentas, não sou uma miúda inocente e deslavada que pode ser manipulada ou humilhada só porque sim. Isto passou-se e passa-se em várias facetas da minha vida e aquelas pessoas que mais arvoram aos sete ventos que são muito à frente, são precisamente as piores. Tudo são interesses, julgamentos, panelinhas e coisas que tais. E se me puderem prejudicar, nem que seja só para me verem ainda mais triste e deprimida do já habitual, melhor.

As razões dessas pessoas não as conheço. Porque provavelmente não existem. É só porque sim. Deve ser um prazer sádico em ver os outros mal. Mas isso comigo, ao contrário de muitos e longos anos da minha vida, já não funciona. Exemplos das atitudes destas pessoas são muitos. Desde fazerem-se passar por muito tolerantes e amigas e serem amigas íntimas de pessoas altamente transfóbicas e preconceituosas, de acharem que por serem trans as outras pessoas trans têm que se comportar, mostrar e viver como elas, de usarem subterfúgios para me humilhar e fazer passar mensagens a outras que não correspondem em nada à verdade.

Na realidade, isto é cada um por si, e à primeira hipótese deitam-te um balde de merda pela cabeça abaixo literalmente. Já para não dizer que acham que te podem passar atestados de estupidez também porque sim. Levei com isto da parte da minha suposta "família", de pessoas "amigas" de muitos anos, de outras pelas quais eu nutria grande estima, mas que só demonstraram não a merecer de forma alguma. 

Eu sou como sou e só têm que me respeitar. Não estou neste mundo para agradar a ninguém, nem para fazer papel de isto ou aquilo. Sou completamente transparente, e não tenho esqueletos no armário. Não tenho nada a esconder, e apesar de não sentir qualquer orgulho por ser uma mulher transexual, também não tenho qualquer vergonha. Nasci como nasci e quanto a isso nem eu nem ninguém pode fazer alguma coisa. O dever de todos é respeitarem-me como sou. Se não gostam, ponham-se a milhas, que este mundo tem muitas.

E não pressuponham coisas acerca de mim, porque não só não têm que o fazer, como eu não o admito. Não assumam que genitália tenho ou deixo de ter, não assumam que sou lésbica ou bissexual só porque vivo com uma mulher, não assumam que me prostituo para viver, não assumam que sou uma bananas que se convence com duas ou três patranhas. Não assumam nada, porque não têm nada que o fazer. Porque eu não assumo nada em relação aos outros. São como são e eu respeito-os, desde que também o façam comigo.

Já me iludi muito com a ideia de constituir uma família, por exemplo. Não aconteceu, porque nunca encontrei um homem que se mostrasse à altura, nem consegui reunir as condições para que tal acontecesse. Nessa busca incessante que fiz durante grande parte da minha vida, cometi muitos erros. Mas toda a gente erra. Só que ao contrário da maioria das pessoas que diz que não se arrepende de nada, eu arrependo-me de muita coisa. Como ter sido demasiado branda com certas pessoas e demasiado cruel com outras. Sou humana, temos pena.

E, para mim, ser-se humana é ter-se sentimentos e respeitar os dos outros. É respeitar aquilo que o outro é, na sua totalidade, e não brincar, humilhar, magoar, pisar os outros. Não assumam nada. Conheçam e tirem as vossas conclusões, se é que isso alguma vez fez sentido dentro da incongruência que é o ser-se humano. E não continuem a passar-me atestados de estupidez, ok? Obrigada por nada.

---> Foto de Pedro Simões, 2006

domingo, março 20, 2016

Do casulo para o mundo

Quando me senti como realmente era, nada foram rosas. Comecei, com a ajuda de dois grandes amigos, por ser a "porteira" Lara, personagem criada para que eu me pudesse libertar e sentir melhor, numa mistura de cómico e glamouroso. Não comecei por me vestir em casa, nem a usar perucas (só no Carnaval), nem a ter uma espécie de ordem no caos que reinava em mim. A Lara porteira de jantares e festas em casa desses amigos surgiu naturalmente para mim, e serviu de alavanca para que eu me pudesse finalmente assumir em relação a todos os meus amigos e família.

É sempre um ponto-chave aquele em que nós, mulheres trans, começamos a assumir a nossa verdadeira identidade, ou seja, a vestir-nos e a estarmos de acordo com o nosso verdadeiro género. Todos os casos são diferentes, mas têm uma coisa em comum: temos sempre que o fazer às escondidas da família e, muitas vezes, dos próprios amigos. No meu caso foi da família. Em relação aos amigos, e como referi acima, dois deles, dois irmãos que muito prezo, foram fundamentais para eu sair do meu casulo e começar a ser quem eu realmente era. Surgiu a Lara porteira.


A Lara porteira era uma figura primordial, para mim. Bem maquilhada, penteada e sempre com um belísssimo figurino (e sempre diferente), era eu que abria a porta a todos os convidados que iam a jantares e festas em casa desses meus amigos. Acho que tudo começou por uma brincadeira, e acabou por se estabelecer que a Lara se ia manter como porteira durante algum tempo. Nunca nada foi premeditado. Acho que os meus amigos eram bem mais perspicazes que eu e a ideia surgiu deles e continou durante algum tempo. Diverti-me imenso e sentia-me uma espécie de Gata Borralheira naquelas noites de festa. Nunca lhes poderei pagar o prazer e a imensa felicidade de poder ser eu, nem que fosse por uma noite de vez em quando.

Depois, no final da noite, despia a roupa, descalçava os saltos altos, e retirava a maquilhagem para poder voltar para casa dos meus pais, onde vivia na altura. Era muito triste, muito difícil para mim, mas tinha que ser. Sim, porque apesar deles saberem que eu era uma mulher transexual, não permitiam que eu me apresentasse como mulher de forma alguma. Só o facto de eu fazer questão de ter o cabelo comprido já os incomodava e qualquer peça de roupa que eu usasse mais feminina ou que deixasse dúvidas dava logo em discussão e ameaças.

Só quando saí lá de casa deles é que pude começar a viver. No emprego que tinha na altura era assumida já, e quando passei a ir trabalhar vestida de uma forma mais feminina e que não deixava dúvidas quanto ao meu género não houve nenhum tipo de problema. Nem eu nunca admiti faltas de respeito, nem bocas à forma como me deixava ou não de apresentar. Sei que houve muitas críticas, muita maldade nas minhas costas, mas à minha frente nunca ninguém teve coragem de dizer ou insinuar nada.

E a Lara porteira tinha dado lugar à Lara. Eu já era eu, a cem por cento, 365 dias por ano. Tinha um sítio onde viver, tinha o meu emprego, tinha a minha vida. Nunca me senti tão livre. E comecei a fazer alguns ensaios para trabalhos de amig@s na altura. E comecei a ir aos Prides sem vergonha e sem ter que me vestir às escondidas e ter que me despir antes de chegar a casa. Devo muito a este pequeno grupo de amig@s que me ajudou e apoiou incondicionalmente quando eu mais precisava. Se tivesse sido mais cedo na minha vida, provavelmente eu teria sido posta fora de casa, como ainda acontece a uma grande maioria das mulheres trans. Eu preferi jogar pelo seguro e apagar-me durante a maior parte da minha vida. O sofrimento de não poderes ser tu no dia-a-dia é algo que não consigo explicar, nem expressar. Só quem passou ou passa pelo mesmo entende a dor. E este post é dedicado a todas as mulheres trans. Porque o que nós somos não é vergonha nenhuma. Porque o que nós somos é natural e porque somos merecemos todo o respeito do mundo.



Todas nós temos as nossas histórias de vida e de como saímos do casulo e nos libertámos. Eu nunca tinha falado da minha. Agora senti que tinha chegado o momento e deixei aqui o meu testemunho. Sejam sempre vocês próprias e vão em frente. Se vocês não lutarem pelos vossos direitos, acreditem que ninguém mais o fará. E respeitem-se. E exijam respeito. Não há nada mais maravilhoso do que sermos nós próprias. E o caminho somos nós que o trilhamos.


Fotos do meu Arquivo Pessoal. Agradecimentos: Paulo Araújo, Iolanda, Carina Lima, Diogo Andrade.

quarta-feira, fevereiro 03, 2016

"A Rapariga Dinamarquesa" somos nós

Inicialmente fiquei um pouco de pé atrás em relação a ver o filme "A Rapariga Dinamarquesa" ("The Danish Girl" no original) de Tom Hopper, mas finalmente decidi-me a ir ver. Sem grandes expectativas, este filme mostrou-se uma peça fina de algo bem mais profundo do que uma mudança de pele - uma mudança de alma.



Desde que estreou, que "A Rapariga Dinamarquesa" tem dado muito que falar tanto lá fora, como cá, não só pelas pessoas trans, mas pelo público em geral. As pessoas trans, nas quais me incluo, questionaram a escolha de Eddie Redmayne para o papel de Lili Elbe, visto ser, mais uma vez, um homem cisgénero a representar uma mulher transgénero. Mas ao longo do filme ele realmente convence e está muito seguro num papel duplamente difícil: representar uma mulher transexual por um lado, e uma que foi real e não imaginada, por outro.

Redmayne sai-se, na minha opinião, muito bem, e está extremamente bem acompanhado por Alicia Vikander que está espantosa no papel de Gerda, mulher de Lili antes da transição e melhor amiga depois. Há coisas neste filme que vão muito para lá do que parecem à primeira vista. O facto de Lili se distinguir do "homem que foi" na parte inicial do filme, dando quase a ideia de uma dupla personalidade é perfeitamente credível para quem, como Lili é uma mulher transexual. Eu revi-me totalmente nesta dicotomia, pois eu própria separava as duas coisas ao longo de vários anos.

Tal como Lili, eu desenhava e pintava, criava figurinos de moda, cheguei a fazer desfiles em nome próprio (o de baptismo) e figurinos para dança e teatro. Ao longo da transição fui deixando de ter sequer vontade de pegar no lápis e nos pincéis, e após a transição nunca mais peguei em nada. É passado. Era uma vontade de me representar a mim própria naquelas telas, naquelas mulheres que vestiam roupas que eu criava. Agora já nada disso faz sentido. Já não preciso de me "representar" no papel. Agora já sou.

O mesmo se passou com Lili. Redmayne conseguiu imprimir-lhe um toque de suavidade e os gestos estudados na sua "pesquisa" não passam de querer tanto sentir-se como era no seu interior, que luta para que isso transpareça para todos aqueles que a rodeiam. Também não nos podemos esquecer que esta história de vida se passa no início do século XX na Europa do Norte, em que os hábitos e os costumes eram bem diferentes daquilo a que estamos acostumados. O simples facto de Lili ter surgido acabou por abanar todas as estruturas sociais da época e chegar aos nossos dias.



"A Rapariga Dinamarquesa" é um filme de uma sensibilidade requintada e bordada nos sentimentos e emoções de duas mulheres - Lili e Gerda. Tom Hopper meteu-se por um caminho que poderia ser muito escorregadio e perigoso mas saiu-se muitíssimo bem, na minha opinião. Tecnicamente, o filme é perfeito. Mas, muito mais importante que isto, emocionalmente é consistente e real. Comovi-me muito ao longo do filme, revi-me em imensas situações e estados de alma, e chorei compulsivamente no final, como não me acontecia há imensos anos. Esta Lili fez-me libertar fantasmas e recordações, fez-me sentir que por esse mundo fora há Laras, há Lilis, há toda uma panóplia de mulheres que lutam para ser o que são apenas porque não nasceram como deviam.

Este filme deu e continuará a dar que falar, mal ou bem, mas o que interessa, no fundo, é que ele existe e mostra que a luta de uma mulher trans se pode tornar numa luta de todas. Obrigada Tom Hopper.

segunda-feira, janeiro 04, 2016

Transfobia à Portuguesa

Em resumo do ano de 2015, muito se tem escrito sobre a visibilidade das pessoas trans (principalmente mulheres) que foi muita. Principalmente nos EUA, onde surgiu Caitlyn Jenner, entre a visibilidade que já tinham Laverne Cox, Janet Mock e Carmen Carrera, por exemplo. Mas toda esta mediatização trouxe ao de cima também o pior: a alta taxa de homicídios sobre pessoas trans, a alta taxa de suicídio das mesmas, e todo o tipo de discriminações de que esta população é alvo. E em Portugal, como é? Pois é, neste "jardim à beira-mar plantado" as coisas são bem mais negras do que parecem. E as pessoas trans vivem uma transfobia diária, que as desgasta e destrói.



Portugal é um país de "brandos costumes", como se costuma dizer, o que engana quem parte do princípio que isto implica que a aparente hospitalidade, ar caloroso e falsa simpatia não escondam imensa homofobia, e ainda mais transfobia. Falo por mim, que a sinto na pele todos os dias, em que as pessoas não falam à minha frente, mas quando o fazem é em tom depreciativo e provocador, como tratar-me como "senhor" ou sempre no masculino, rirem-se quando passo, e mandarem bocas entre-dentes como "olha o travesti", ou "o homem com mamas". E de certeza que mais mulheres trans sentem o mesmo olhar de desprezo que eu sinto, e os gozos por parte de homens e mulheres, novos e velhos.

É importante ter a noção de que a transfobia existe e muito em Portugal, mas é uma transfobia silenciosa. As pessoas tentam não te confrontar, falam nas tuas costas e as palavras e mensagens transfóbicas passam de boca em boca. Para a esmagadora maioria das mulheres trans, o apoio da família é quase imprescindível. Mas, infelizmente, para a maioria de nós, esse apoio ou é mínimo ou não existe. No meu caso, quando contei à minha mãe que era transexual, ela ficou furiosa e perguntou-me porque não lhe tinha contado mais cedo. Sim, porque segundo ela, aí ela e o meu pai poderiam "ajudar-me", pondo-me a fazer um tratamento de masculinização. O meu pai deixou praticamente de me falar, tratava-me o pior possível, e chegou ao ponto de, apesar de eu já não viver na casa deles, me proibir de lá entrar vestida de mulher e principalmente de saias! Quanto aos meus irmãos, pouco ou nada há a dizer, pois a história repete-se. Fui rotulada como travesti, no mais depreciativo que isto tem, e todos eles (pai, mãe e irmãos) sempre fizeram questão de me agredir como podiam, sendo que negar a minha verdadeira identidade era a melhor forma de o fazer, e por isso sempre me trataram no masculino, mesmo após a minha transição e a minha mudança legal de documentação do masculino para o meu verdadeiro género, o feminino.

A nível laboral, sempre fui discriminada, antes, durante e depois da transição. Há muito boa gente que critica as mulheres trans por "caírem" na prostituição, mas ninguém fala da verdadeira razão para isso acontecer. A discriminação, a transfobia que sofremos quando procuramos um trabalho dito "normal" é tanta, que a maioria de nós, apenas para sobreviver é obrigada a fazer trabalho sexual. Sim, porque não nos resta mais nada quando todas as portas se fecham! No meu caso, consegui com muito esforço um trabalho que eu gostava há uns bons anos atrás. Aparentemente, não era discriminada, quase não havia sinais, a não ser olhares de lado, alguns risos e aquela sensação de que estão a falar de nós nas nossas costas. Estava numa fase crucial da minha transição, e aquele ambiente não me ajudou nada. Tirando umas três ou quatro pessoas com quem me dava, de quem eu gostava e presumo que gostavam de mim, era pura e simplesmente posta de lado, e tinha que trabalhar mais do que os outros, sem ter os devidos créditos.

Através de uma pessoa que trabalhou no mesmo local que eu, no período de dois anos em que lá estive, tive uma imagem bem mais nítida dos preconceitos, discriminação e má-língua que se passava nas minhas costas. Tal como nos EUA, Brasil ou qualquer outro lado, o facto de eu frequentar o WC das mulheres era extremamente mal-visto pelas pessoas, que achavam que "não devia ser permitido". Soube também que existiam piadas de mau-gosto e os tais risos quando eu passava e uma pessoa que eu admiro imenso e adoro foi discriminada e gozada por se dar comigo e por irmos tomar café. No meio disto tudo, fui obrigada a meter baixa, porque adoeci gravemente na altura. Houve reclamações por esse facto e o comentário de que eu só estava empregada porque "ficava bem" em termos de diversidade. Por aqui se vê que conseguir um trabalho e mantê-lo sendo uma mulher trans é tudo menos fácil e se entende que a esmagadora maioria de nós seja trabalhadora sexual ou por lá tenha passado. 

A nível das relações humanas, sejam de amizade, trabalho ou amor, tudo se desvanece na enorme transfobia generalizada numa sociedade que se diz e se tenta mostrar avançada, mas que continua quase igual ao que era nos tempos da ditadura. De relações amorosas já escrevi várias vezes, mas nunca é demais lembrar e focar bem que nós, mulheres trans, nunca somos vistas como "mulheres". Somos outra coisa qualquer, que serve para sexo, mas que não serve para se ter um relacionamento sério, para constituir família, etc. Somos objectos sexuais, só. Somos consideradas fetiches, criaturas da noite, freaks, aberrações da natureza. São-nos negados os mais ínfimos direitos de termos uma vida familiar (e não só) "normal", apenas porque somos como somos.

Em jeito de esperança, apesar de ténue, espero que 2016 traga algo de melhor para a vida das pessoas trans em Portugal. Já chega de tanto preconceito, de tanto ódio, de tanta discriminação, de tanta transfobia. Convém lembrar Gisberta, que foi brutal e horrivelmente assassinada por um grupo de miúdos há dez anos atrás, faz em Fevereiro. Que a transfobia que matou Gisberta não se repita e que tod@s nós lutemos para que este mundo seja um melhor lugar para viver. Sei que estas esperanças não serão, muito provavelmente, transformadas em realidade, mas não se pode desistir. 

A transfobia corrói, magoa, mata. Nunca se esqueçam disto. 

---> Foto © Pedro Medeiros, Lara Crespo, Cais do Ginjal, 2014

domingo, dezembro 20, 2015

A minha transição foi a puta da confusão

Sempre soube que era diferente das outras crianças nascidas biologicamente do sexo masculino. Fui-me tentando entender até chegar a uma fase em que, apesar da confusão na minha cabeça, tinha a certeza de que não era um homem. Em 2000 comecei a minha longa e penosa viagem por uma transição que foi um pesadelo.



Decidi fazer um processo clínico de transexualidade num hospital público. Comecei a ter consultas de psiquiatria/sexologia em 2000. O chefe de equipa e responsável precisamente pela área da psiquiatria e sexologia foi das pessoas mais asquerosas e mal-formadas que já conheci em toda a minha vida. Basta dizer que, quando terminei o meu processo clínico fiz queixa formal dele, o que, obviamente, não deu em nada.

Tive consultas com essa criatura e um psicólogo/sexólogo durante mais de dois anos. Entretanto, e depois de eu muito insistir com o chefe de equipa, lá fui enviada para o endocrinologista para começar o tratamento hormonal, o qual não comecei, porque o psiquiatra não deu autorização, pois eu, como ele fazia questão de frisar, "não me vestia como uma mulher", "não parecia uma mulher", "não me maquilhava, nem usava saltos altos nem saias". Acho que isto, além de dizer tudo, é mesmo sem comentários, certo?

Nos sete longos e penosos anos que calcorreei da minha casa até áquele hospital, nunca o psiquiatra me tratou no feminino. Eu era o tal e coiso, não a Lara, como eu estava farta de lhe dizer e afirmar. Ao final de cerca de dois anos e como aquilo não andava nem para trás nem para a frente, decidi interromper as consultas por algum tempo (também tinha uma consulta de três em três ou de quatro em quatro meses). Aí surgiu o meu primeiro contacto com a Jó Bernardo, a quem muito devo, pois além de me ajudar a perceber-me, foi ela que me impulsionou a assumir-me como eu era e sempre tinha sido: uma mulher.

Comecei a fazer tratamento hormonal cá fora, mas aconselhada e seguida por uma jóia de pessoa, uma médica endocrinologista que era fantástica no trato e no auxílio. Regressei às consultas no hospital algum tempo depois, já a fazer tratamento hormonal e com um aspecto físico já ligeiramente diferente. O psiquiatra continuou a tratar-me no masculino. Afinal, "eu não parecia uma mulher".

Nessa altura, e como eu já fazia tratamento hormonal, ele foi obrigado a mandar-me para o endocrinologista da equipa, muito a contragosto. Fiz análises e comecei a ser seguida por esse médico. 

E os anos foram passando e nada. Fiz todo o tipo de exames, coisas que eu nunca ouvi alguém ter feito num processo desta natureza, como electroencefalogramas (EEGs) e um TAC ao cérebro. Passei um mês a fazer testes psicológicos para despistarem se eu era maluca da cabeça. Fiz a análise ao cariótipo, fui fazer a minha segunda opinião com uma psiquiatra/sexóloga em Coimbra nos HUC. 

Entretanto, eu já começava a dar sinais de depressão, cansaço extremo e falta de paciência. 

Até que chegou o dia em que ele (o chefe de equipa) já não tinha mais desculpas para adiar a fase de relatórios e o meu processo completo foi para a Ordem dos Médicos para avaliação. Esta foi positiva e passei para o cirurgião. (Calma, que está quase a acabar esta pseudo-odisseia ridícula).

O cirurgião era uma boa pessoa lá no fundo, apesar das notórias limitações em perceber o que é, na realidade a transexualidade, e tinha conceitos tão ultrapassados, que eu nem sequer me dei ao trabalho de discutir ideias com ele. 

Como com o tratamento hormonal o meu peito não cresceu nada, ele optou por me colocar expansores por detrás do músculo peitoral, para assim criar caixa e depois se colocarem as próteses de silicone. Assim foi. Depois da cirurgia tudo parecia bem, ia às consultas com ele e enchia um pouco mais os expansores, até que descobri que havia algo errado num peito. Pois havia, tinha um expansor furado. Fui operada pela segunda vez para retirar esse e colocar outro.

Fiquei de tal forma traumatizada por me ver já com uma mama e sem a outra do mesmo tamanho, que adiei a colocação das próteses uns anos. Finalmente, em 2013 fui operada, já por outro cirurgião, que me retirou os expansores e me colocou as próteses mamárias de silicone.

Resumindo: fiquei com duas cicatrizes horríveis e enormes por baixo do peito e no local errado, devido a culpa do primeiro cirurgião, o meu peito ficou duro e nada parecido com aquilo que eu imaginava que seria, ou seja, parecido com o toque de umas mamas naturais, e o tamanho não é o que eu queria.

Estou em depressão profunda há anos. Tomo ansiolíticos todos os dias e só assim consigo suportar a minha vida. Nada correu como eu esperava e ter nascido uma mulher transexual não foi uma benção, não foi uma coisa normal, foi uma maldição para mim. É um estigma que tenho que carregar enquanto cá andar, e quanto a isso nada há a fazer.

Não contei tudo isto para desanimar ninguém que deseje fazer um processo clínico. Não contei isto para que dissessem que sou uma coitadinha, uma desgraçada, ou que me armo em tal. Contei tudo isto para que as pessoas tenham a noção de que nascer-se transexual deveria ser tão natural como nascer-se cissexual. Infelizmente, e por razões exteriores também a nós, a nossa vida é dificultada ao máximo por família, supostos amigos, médicos e afins. É preciso ter-se muita força, mas também muita sorte para se conseguir o que se quer e seguir em frente. Foi por isto que eu decidi escrever o martírio que passei, para que outras pessoas trans não tenham que passar pelo mesmo.

É urgente despatologizar a transexualidade e as identidades trans. É urgente pôr a Ordem dos Médicos e os seus predicados fora da vida das pessoas transexuais. É urgente podermos decidir sobre nós, sobre os nossos corpos. É urgente criar uma noção de respeito pelas pessoas trans numa sociedade que tem duas palas e só vê o que tem em frente. É mais do que urgente acabar de vez com a transfobia. Obrigada por quem leu estas palavras. Espero, sinceramente, que sirvam para alguma coisa.

---> Foto © Pedro Medeiros, Lara Crespo, 2014

domingo, dezembro 13, 2015

Saudades da vida que não tive

Num mundo cada vez mais caótico e em que as crises de valores são mais que muitas, sobreviver como uma outsider torna-se cada vez mais difícil.



Em criança sempre me apercebi da minha diferença em relação às outras crianças. Lembro-me muito bem de cada pormenor, de cada detalhe, de cada estalo, de cada humilhação, de cada castigo que sofri apenas por ser quem sou. Isto prolongou-se até à adolescência e depois por aí fora, obviamente já revestido de outra roupagem.

Sempre quis eliminar essas lembranças, esses pensamentos e muito raramente falei neles. Para mim existia e existe apenas uma parte da minha vida a recordar: a idade adulta e principalmente a fase da transição e pós-transição. O resto é merda, não interessa. Ou pelo menos era assim que eu gostava que fosse. Mas os fantasmas do passado vêm sempre assombrar-nos o presente.

E numa fase em que tudo ou quase se põe em questão num mundo em ebulição social e humana, eu própria me ponho em causa no sentido do que estou aqui a fazer. Ser uma pessoa que não se enquadra nos padrões sociais da normalidade leva-me a ter uma vida de outsider. A evitar o contacto com os outros. A tentar evitar a violência psicológica e física de que já fui vítima assim como a esmagadora maioria das mulheres que nasceram como eu e que o assumem.

Difícil, difícil é encontrar empatia, entendimento nos outros. É encontrar quem te dê um ombro e quem converse contigo, quem te entenda, quem te surpreenda por te fazer ver que também fazes parte deste mundo. Encontrei poucas pessoas assim ao longo da minha vida. E, hoje em dia, muito poucas conheço que assim sejam e que ajam de forma correcta em relação a mim.

E, numa fase em que as coisas não correm bem, mais falta sentes ainda dessas pessoas, de pessoas que são empáticas contigo e que te mostram que viver ainda vale a pena. Depois de duas pessoas muito importantes na minha vida terem estado gravemente doentes quase em simultâneo e de agora ser eu quem está doente, sinto-me demasiado desprotegida e vulnerável. As emoções são muito fortes, tudo parece exacerbado. É como uma tempestade que não tem fim à vista. 

Tenho saudades da vida que não tive. Gostava que as coisas tivessem sido de forma diferente. Provavelmente todos nós gostaríamos. As pessoas têm a mania de dizer que não se arrependem de nada. Eu não. Arrependo-me de imensa coisa e teria feito imensa coisa de forma diferente. A única coisa que nunca teria feito de outra forma era assumir quem eu sou, uma mulher, independentemente daquilo que os outros digam, façam ou pensem.

Esta sensação de estar perdida num mundo que não me parece meu tem coisas positivas. Como ver mais claramente como os outros são. E, principalmente, ver com mais clareza como eu sou.

---> Foto © Pedro Medeiros, Lara Crespo, Cais do Ginjal 2014

quarta-feira, dezembro 02, 2015

Achas que me conheces?

É curioso ver que, aos 44 anos, ainda sou tratada como "algo" de adquirido. Pessoas que, supostamente, me deviam conhecer não sabem sequer quem eu sou na realidade, e outras, como nas redes sociais, partem do princípio de que como leram entrevistas minhas ou me viram na televisão, ou viram algum depoimento meu em vídeo, eu sou "da família".



O grande problema, neste tipo de relações "reais", ou seja, de pessoas que te conhecem há anos, não interessa se muitos se poucos, é que acham que tu és assim ou assado porque lhes deste confiança demais, logo deste-lhes um conhecimento de ti que essas pessoas não só não conseguiram apreender, como desdenham dele. Não é importante o que poderiam conhecer de ti, mas os juízos de valor que elas fazem de ti. De mim, neste caso, que dou demasiada confiança e me abro demais com as pessoas e no fim, quem fica na merda sou eu, em todos os aspectos.

No fundo, essas pessoas, desde família a supostos amigos, não me conhecem nem nunca conheceram. Não que eu não lhes tenha dado as ferramentas para isso, mas porque essas pessoas ou são estúpidas, ou fazem-se. Lá porque eu lhes dei a mão, não implica que me fiquem com o braço todo, sendo que nunca é para coisas positivas. Sei que dizem e escrevem muita coisa acerca de mim e entre eles, mas nem dez por cento do que põem lá é verdade ou corresponde à pessoa que eu sou.

Isto aplica-se igualmente a quem é meu amigo nas redes sociais e não me conhece pessoalmente, partindo apenas de entrevistas minhas para me julgar. Tenho muitos defeitos, mas nunca faço juízos precipitados, muito menos juízos de valor. Essas pessoas acham que me conhecem, que eu sou assim e tal, e quando lêem o que escrevo ou o que partilho se calhar não é bem o que elas estariam à espera de mim, logo eu devo estar supostamente a enganá-las, ou enganei-as desde o início. Nada disso, elas é que tiraram conclusões precipitadas sobre mim, nunca fizeram um esforço para me conhecer, e partem de testemunhos públicos meus para me julgarem. Mas quem é que esta gente pensa que é? 

Não admito que me julguem seja pelo que for. Se, hoje em dia, eu estou mais amarga, mais fria, mais distante ou algo do género e por aí fora, muito a toda esta gente se deve. Desde a suposta "família" aos "amigos" que nunca me conheceram. Sempre mostrei quem era, fiz a minha transição e sou a mesma pessoa! Evolui e mudei. Se foi para melhor ou para pior, isso já é problema meu, não de mais ninguém. Mas não passei a tratar ninguém de maneira diferente, o que não se pode dizer dos outros.

No meio disto tudo cheguei a mais uma brilhante conclusão e verdade da vida. Quanto menos deres a conhecer de ti, melhor vives e mais em paz contigo própria estás. Se te entregas às relações com os outros, só tu sais sempre a perder, sem excepção. És humilhada, pisada e maltratada e nem sabes de onde elas te vêm. Por isso escrevo cada vez menos aqui e também no facebook. Apesar do meu grupo de amigos virtuais ser "chocantemente" pequeno comparado com o que vejo por lá, basicamente todas as pessoas importantes para mim lá estão. Ah, e nunca "desamigo" alguém sem razão. Tal como na vida real, não deixo de falar ou de me dar com alguém sem uma razão plausível para mim.

Meus e minhas car@s, eu comecei a dar a cara em 2003. Tudo o que disse em entrevistas foi verdadeiro e honesto e até falei mais do que devia, e numa grande quantidade de vezes não foi o que eu disse que foi publicado. Logo, não pensem que me conhecem só porque leram uma entrevista, ou porque me conheceram naquele dia lá no bar não-sei-quantos e trocámos dois dedos de conversa. Eu sou, tal como todos vós, muito mais do que isso, e não permito que qualquer um/a entre na minha vida.

Respeitem-me, conheçam-me e assim, sim. De outra forma, será sempre um rotundo não.

---> Foto: Eu, no espaço Mob, dia 20 de Novembro de 2015, no Transgender Day of Remembrance (TDOR) num evento organizado pelo colectivo Lóbula.

quinta-feira, outubro 29, 2015

Felicidade? O que é isso?

Nós temos sempre a expectativa de que um dia vamos ser felizes, como se a felicidade fosse um estado de alma e não pequenos momentos em que sentimos um êxtase de bem-estar. O problema é quando não sentimos nem um desses momentos. Será que aí eu posso falar de felicidade? Claro que não.

Sonhei ter uma vida “normal” como qualquer outra mulher. Isto muito antes da minha transição, já sonhava com ter um companheiro, filhos, uma casa junto à praia (sempre a calma relaxante do mar) e um trabalho que me preenchesse. Nada disso aconteceu, aliás, nem por sombras. Só consegui ter uns dois ou três supostos “namorados”, que tinham vergonha de mim, de andar comigo na rua, e eu servia como objecto sexual dentro de quatro paredes bem calafetadas. Para mim, na minha estúpida ingenuidade, aquilo era carinho, talvez até amor.

Amor? Nada sabia sobre tal coisa e ainda hoje nada sei. A ingenuidade é que se foi, esbateu-se e eu tenho a perfeita noção de que fui cúmplice de uma farsa a dois. Deixei que acontecesse o sexo na esperança de que um dia algum deles me amasse. Mas amar uma mulher trans como eu? Eu não sirvo para amar, sirvo para ser fodida. E o passar do tempo mostrou-me isso. Que a felicidade que eu tanto almejava era uma fraude, um conto de fadas de uma mulher com mente de miuda que achava que o príncipe encantado existia.

Depois fui vendo que a minha carência natural era tão grande que faria qualquer coisa para não estar sozinha comigo mesma. Criei laços afectivos com várias pessoas, mas chego à conclusão que não vale a pena apostar nessas relações. As pessoas são demasiado egoístas, só pensam nelas e magoam-te deliberadamente se não correspondes de alguma forma ao que elas querem de ti. Mas houve algum momento de felicidade? Não, nenhum. Não sei o que é isso. Aliás, acho que já não quero saber sequer.



Depois vêm as chamadas redes sociais. Locais onde supostamente falas, comunicas com pessoas amigas e conhecidas e incrementas relações com essas pessoas. Bullshit. Não há comunicação, não há contacto, não há troca. Posso passar horas com o facebook aberto e nem uma única pessoa vem falar comigo no chat, ou põe um like numa publicação minha. E isto é um reflexo da vida real. O meu telemóvel recebe uma chamada duas ou três vezes por ano, e umas sms de vez em quando. No meu caso, a realidade e a ficção são uma e a mesma.

Nasci sozinha, nunca tive atenção positiva por parte dos meus pais, não tive amigos na infância. Foram surgindo algumas pessoas na minha vida que desapareceram praticamente todas quando me assumi com mulher transexual. Das que ficaram, cada uma tem a sua vida, cá ou no estrangeiro, mas ninguém se preocupa realmente como estou ou deixo de estar. Não sinto carinho, amor, por parte dos outros. Sinto distanciamento, frieza, e o eterno “orienta-te, pá, que isto é cada um por si”.

Felicidade é uma palavra bonita para os poetas. Deve ser bom sentir momentos de felicidade. Deve ser bom ter uma vida preenchida por carinho e amor. Deve ser bom ter companhia nesta passagem por este calvário chamado mundo. Mas, como dizia o outro, nasces só e morres só. E essa é a mais pura das verdades. E essa é a minha verdade. Vou deixar a felicidade e o amor para os poetas escreverem lindas poesias. Eu vou seguindo o meu caminho. Sozinha.

sexta-feira, outubro 09, 2015

Crónica da morte

Há uma altura da vida em que te apercebes que és um ser finito. Em que tens a real noção de que a vida acaba. Não só a dos outros, a que vais assistindo, mas que a tua própria vida vai acabar e passarás para um novo estádio, ou não, mas que vais largar esta casca em que nasceste e que tudo o que fizeste, quem amaste, cada pormenor, cada momento, se perdem nas areias do tempo.



Quando vives duas vidas numa só, como é o meu caso, a sensação de que consegues ultrapassar tudo é quase sempre presente. Afinal, vivi metade da minha vida como uma pessoa que não era e estou a viver agora quem sou na realidade. Mas esta realidade, como qualquer outra, é finita, E só agora tenho essa perfeita noção.

As pessoas, no seu geral, tendem a "imaginar" que a vida de uma mulher trans, como eu, é algo estranho, misterioso, que sou uma freak, uma aberração, e por aí fora. Essa limitação que vejo nos outros faz-me confusão, pois nunca fui assim, nunca pensei o mundo e as outras pessoas assim. No fundo, só queria ter uma vida chamada de "normal", como qualquer outra mulher. Mas a sociedade em que vivemos não permite que eu viva a minha vida como uma mulher dita "normal".

Eu sou diferente de qualquer outro ser neste mundo, como qualquer um de nós. Mas sou igual no ter querido casar-me, ter filhos, uma casa, etc., etc., etc. No fundo, até sou mais "normal" do que muitas que dizem e acham que o são e não são transexuais. Sendo assim, caio no fundo do poço da certeza absoluta de que nunca vou conseguir ter uma vida dita "normal". 

Vou ser sempre discriminada. Vai haver sempre preconceitos. Vão sempre haver humilhações. Vão sempre haver agressões. Vai haver sempre assédio. Estou moral e emocionalmente certa do que digo, por tudo o que passei ao longo destes últimos 10, 15 anos. E agora tenho a certeza absoluta de que sou finita. De que morro um pouco todos os dias. E que o meu coração murcha muito ao ver as atitudes e "expressões várias" de pessoas que conheço, ou que pensava conhecer.

Fui obrigada a deslocar-me para o limbo. Não sou nada, nem deixo de ser nada. Assim não chateio nem incomodo ninguém. Não porque eu o queira, mas porque os outros me mandaram para aqui. Uma pessoa como eu sou não pode viver calada, em silêncio. Não pode viver amordaçada. Não pode viver como se estivesse já morta. Preciso de ar, de emoção, de sorrisos e lágrimas, de sentir. Agora já não há dor. Estou preparada para ir. 

Não consegui atingir nenhum dos objectivos a que me propus. Não sei se sou uma falhada, se não, se foi por minha única e exclusiva culpa e responsabilidade (de certeza que há quem ache que sim), se foi metade isto e metade a incapacidade e falta de vontade de os outros me ajudarem. Sim, ninguém vive sozinho, E ou te encaixas numa sociedade ou não. E a tua vida e as tuas vivências e experiências dependem exclusivamente disto.

Não me encaixei, obviamente. Também sou uma pessoa difícil de encaixar num padrão. Nem gosto de padrões sequer. E apercebi-me que vou morrer. É um certo choque estranho este da noção de que vais desaparecer da face da terra. Tenho medo de morrer, como acho que qualquer pessoa tem. Principalmente medo do sofrimento que leva à morte. Espero ter uma morte indolor. Era só o que queria. Sim, porque dores já tenho muitas, pelo menos que seja poupada na morte.

Podia ter escrito um post, uma crónica toda pomposa, toda cor de rosa, mas não me apetece. Nem estou nessa onda. Essa onda já passou há muito tempo. Apeteceu-me escrever sobre a morte. Ou parte do que ela significa: o fim de mim. Para quem não gostou, temos pena. Esses que fiquem descansados, que eu, realmente, não sou eterna.

---> Foto: eu no Alentejo, Julho de 2015.

domingo, setembro 27, 2015

No rescaldo de "I am Cait"

Faz hoje uma semana que terminou em Portugal a emissão de "I am Cait". Supostamente esta foi a primeira season, pois parece que ou Caitlyn Jenner pretende continuar com o seu docu-reality show, ou a emissora pretende mais seasons, ou whatever. Vi e acompanhei com muita atenção todos os episódios, e "I am Cait" não me desiludiu, porque não estava iludida, mas ficou aquém das minhas expectativas.

Tudo começou com a capa e edição especial que Caitlyn Jenner fez para a revista norte-americana Vanity Fair. Houve choque, incredulidade, quem gostasse muito, quem não gostasse nada. Houve, acima de tudo, muito preconceito e muita palavra mázinha acerca de uma mulher que, aos 65 anos de idade, teve a coragem de fazer a sua transição e de o assumir e mostrar publicamente.

Ao longo dos vários episódios de "I am Cait" esta capa de revista e a entrevista dela lá contida são até referidas várias vezes, principalmente pelos dissabores que tudo isto trouxe a Caitlyn, principalmente  a nível familiar. Eu gostei da capa. Gostei da atitude de Caitlyn. Gostei das suas respostas a quem queria que ela se retratasse por mostrar ao mundo que existe. Os seus detractores até chegaram ao ponto de fazer abaixo-assinados e queixas para que as medalhas que ela ganhou enquanto Bruce Jenner lhe fossem retiradas. Felizmente demonstrou-se bom senso e Caitlyn nunca ficará sem as medalhas que ganhou, numa fase anterior da sua vida.



Quanto à série "I am Cait" foi um misto de emoções e de racionalizações para mim. Gabo a Caitlyn ter a coragem de transicionar com a idade que tem e de o assumir como se não houvesse amanhã. Eu fiz a minha transição durante os meus trintas e tais anos e sei bem o complicado que foi, quanto mais uma pessoa com o dobro da minha idade na altura. Mas Caitlyn é rica, tem poder, tem conhecimentos. Tudo coisas que nem eu tinha, nem a maioria das mulheres trans tem. E este foi um tema que muito se discutiu e que é pertinente. Ela também pôde fazer as coisas assim, pois é uma mulher privilegiada comparada com mais de 90 por cento da comunidade trans.

Ela afastou-se, fez a sua transição e apareceu com um rosto e um corpo novos. Quantas de nós puderam ou podem fazer isso? Quantas de nós podem pagar uma Cirurgia de Feminilização Facial ou a colocação de próteses mamárias? Quantas de nós podem pagar laser ou electrólise ao rosto e corpo? Praticamente nenhumas, digo eu. Eu coloquei próteses mamárias, mas fiz todo o processo clínico hospitalar necessário, e até conseguir ter as mamas que sempre desejei, esperei mais de sete anos. Nunca pude fazer laser ou electrólise, apenas cera e lâmina. Nunca pude fazer uma Cirurgia de Feminilização Facial. E não sou pobre, sou remediada. Claro que se tivesse uns milhões no banco, muito provavelmente a história tivesse sido outra.

Em "I am Cait" tentou-se focar vários temas-chave da comunidade trans norte-americana, mas não só, pois no fundo os problemas que lá aparecem, aparecem um pouco por todo o lado, inclusive neste jardim à beira-mar plantado. A exclusão, a discriminação, todos os preconceitos de que somos vítimas, e de como se pode tentar resolver ou minorar essas questões. Mostrou-se também que ser-se uma mulher trans e republicana/conservadora são coisas que não batem lá muito bem, como Caitlyn mostrou com as suas posições. Posições estas que punham muitas questões nos rostos e olhares das outras principais intervenientes na série.

O que mais deu nas vistas foi o total desconhecimento de Caitlyn da vida miserável que a maioria esmagadora da comunidade trans tem. Ficava admirada com os adolescentes que eram expulsos de casa, com o número crescente de suicídios, com a questão sempre pertinente da maioria das mulheres trans terem que se prostituir para terem dinheiro para fazer a transição e por aí fora. Resumindo, Caitlyn Jenner esteve numa "bolha" protectora de senhora rica até à altura em que "explodiu" o seu verdadeiro eu e ela se apercebeu que o mundo não é todo cor-de-rosa e que as pessoas não são todas boazinhas e que aceitam tudo muito bem.

Jennifer Boylan e Candis Cayne foram aquelas que mais se destacaram, para mim, no abrir de olhos de Caitlyn. A experiência de vida de ambas e o que lhe transmitiam de forma directa, mas sem serem maternalistas, foi muito bom a nível público nesta série. Para um público ignorante na matéria e em tudo o que a rodeia, ambas focaram temas e vivências que são extremamente importantes para que as pessoas percebam que ser-se uma mulher trans não é uma escolha, nem uma opção e muito menos um capricho,

Com "I am Cait" revivi alguns episódios semelhantes da minha vida. Emocionei-me com muitas situações. Sorri com outras. Não sendo o género de programa que eu esperava que fosse, "I am Cait" acabou por se revelar minimamente educativo e foi mais do que entretenimento. Também foi emoção, aceitação, lágrimas. Mostrou que, como num programa supostamente "leve" se podem falar de coisas sérias e ensinar, mostrar a realidade de uma comunidade tão menosprezada e maltratada pela sociedade. E isto é mesmo muito importante. Demais.

Quanto a uma continuação da série, cá estarei para ver.

segunda-feira, julho 13, 2015

Transfobia nossa de cada dia

Para uma mulher transexual, madura e feminista é duro ver como vão as coisas que me rodeiam. Desde os comentários ignorantes ao que uma mulher trans supostamente é, passando pelas incalculáveis vezes em que sou tratada como "o senhor", até às propostas de entrevistas em que, passados mais de dez anos em que sou activista, continuam a ser as mesmas. Ou seja, a transição de género é tão, mas tão complicada na cabeça das pessoas, que quase ninguém parece entender (ou querer entender) quem nós somos na realidade.

E a tudo isto chamo de transfobia generalizada e interiorizada. Basta ver que se eu fosse uma mulher cisgénero ninguém me tratava como na realidade tratam. Não me diziam nem metade das barbaridades que dizem, não me humilhavam por ser trans. Não me faziam as eternas perguntas que não se devem nunca fazer a uma pessoa trans, sendo que a principal e a que nunca falha é a "já foste operada?" ou a afirmação do "já és operada". Convém frisar aqui que esta "operação" é a cirurgia de correcção sexual. Sim, parece que há uma obsessão sem limites por parte de pessoas que conheço, de pessoas que não conheço, de jornalistas e por aí fora, pelo que tenho no meio das pernas.

Outra muito boa é "de certeza que me compreendes muito melhor que uma mulher, visto que já foste homem". Credo! Nunca fui homem, graças a deus ou a quem me fez as orelhas! Mas este discurso pseudo-machista ridículo é muito frequente, visto que supostamente eu transitei de um género para o outro. Digo supostamente, porque o que se passou comigo não foi mais do que uma afirmação visual acima de tudo, daquilo que eu sempre fui: uma mulher! Logo, se eu "sou operada", ninguém tem nada a ver com isso. Não nasci homem, nasci um bebé ao qual foi dada essa definição, não pela identidade de género, mas pela genitália com que nasci. E não, nunca vou compreender um porco machista, simplesmente porque não sou homem e não vejo o mundo da mesma forma quadrada que ele.



Quanto às entrevistas, dei a minha primeira por volta dos 31, 32 anos. Tenho 44 agora. Foi para uma revista conhecida na nossa praça e foi feita por uma jornalista com muito tacto, sensibilidade e aprumo. As fotos foram tiradas por uma excelente fotógrafa e o resultado final desta reportagem sobre transexualidade feminina não podia ser melhor. O busílis da questão é que, passados estes anos todos, o respeito com que sou tratada pelos jornalistas é inferior ao com que fui na altura. Por um lado, as questões que falei acima, da cirurgia de correcção sexual, processos clínicos, vida amorosa, etc, são sempre tratados como se eles tivessem o direito a imiscuir-se na minha vida privada. E as questões realmente importante, como a despatologização trans, a luta pelos nossos direitos, que são direitos humanos, a nível de trabalho, saúde, justiça, nunca, ou raramente são tratados. Salvo raras excepções, só houve mais umas duas entrevistas que gostei de dar, sendo que uma delas foi a última que dei, ainda este ano: "Nasci mulher: o testemunho de uma transexual portuguesa".

A mediatização das pessoas trans está mais forte do que nunca lá fora, mas também aqui em Portugal. Cada vez mais pessoas dão a cara, o que é excelente, e falam de sua justiça. Mas o problema é que não há uma comunidade trans. Não há por diversos motivos, sendo que os principais são as eternas guerrinhas pelo suposto mediatismo e o que se acha que se pode ganhar com isso. Outra é quem é a favor ou contra a despatologização, por exemplo. E assim acabam por ficar pequenas ilhas de pessoas, que, convém frisar, já pertencem à minoria dentro das minorias, em vez de um grupo coeso e com força para lutar dentro de uma comunidade LG (Lésbica e Gay) cada vez mais adversa às questões trans, e à sociedade em geral, que nos continua a ver como aberrações da natureza e freaks.

E quanto mais vejo, mais me convenço de que estas arestas nunca vão ser limadas, muito antes pelo contrário, e o fosso entre as pessoas trans em si será cada vez maior. Socialmente então é uma desgraça completa. No que a mim me diz respeito, já evito inclusivé sair de casa só para não apanhar uma camada de nervos com a estupidez, ignorância e mal-formação das pessoas. Não suporto tricas e fofocas e isso é o que mais acontece, levando a que eu entre num café e toda a gente se cale e fique a olhar para mim. Não admira que se diga que Portugal está no cú da Europa, porque a todos os níveis, e então a nível de mentalidades, está mesmo. O que é pena para um país tão lindo.

Não peço compreensão. Não peço que se ponham no meu lugar. Apenas exijo respeito. E isto aplica-se seja a quem for. Chega de transfobia! Já chega de termos que levar com as vossas frustrações! Mal ou bem, passável ou não passável sou Mulher e é assim que exijo ser tratada. Obrigada por nada. 

Foto: Clara Azevedo, 2003 - Todos os direitos reservados.

domingo, julho 05, 2015

Amanhã é outro dia (será?)

Acho piada a como, sem sabermos, correm "coisas" a nosso respeito nas nossas costas. Sinceramente, isso não me afecta, a não ser no ponto em que pode prejudicar a minha relação com pessoas que respeito e de quem gosto. Também vou reflectir aqui sobre o que considero ser um tlover e um homem aberto, de cabeça arejada, que se relaciona com mulheres, independentemente de serem cis ou trans.

No outro dia falava com uma amiga ao telefone, e ela, sem se dar conta, referiu que "apesar do que dizem, é minha amiga e gosta muito de mim". Na altura, não liguei muito, confesso. Acho que nem me apercebi bem das implicações do que ela disse, a não ser algum tempo depois. Até me ria disto, se não se tivesse formado uma bolha de interrogações na minha cabeça. Quem anda a dizer o quê de mim. Já muitas foram as pessoas que, nas minhas costas, andaram a espalhar boatos horríveis, e para quem não me conhecia minimamente, acabou por ser extremamente desagradável. Mas soube sempre, por portas e travessas, o que diziam apesar de não saber o porquê. Neste momento não faço ideia do que andam a dizer, mas uma coisa eu tenho a certeza: estou de consciência tranquila e se forem "estórias lindas" como as que já inventaram no passado, ainda mais descansada estou.

Quem me conhece e é meu amigo vai manter-se a meu lado. Quem emprenhar pelos ouvidos isso já não será problema meu e, sinceramente, quem acredita em coisas sobre mim contadas seja por quem for, não merece nem a minha atenção, quanto mais a minha amizade. Assunto encerrado e recado dado à navegação.



Tlovers e homens cis hetero que se relacionam com mulheres trans e cis. Depois de já ter escrito alguns posts sobre o assunto aqui no blog, um post de Janet Mock de há uns tempos atrás fez-me voltar à questão, pois é pertinente entender que uma coisa é uma coisa e que outra coisa é outra coisa.

Tlovers conheci vários. São homens eternamente fascinados com mulheres trans não-operadas, pois a inversão de papeis e a relação sexual com uma mulher com pénis é algo que os fascina mais do que uma relação sexual com uma mulher cis (logo, com vagina). Homens cis hetero que se relacionam com mulheres independentemente do facto de serem cis ou trans conheci um ou dois.

Curiosamente, e como fui conhecendo vários, os tlovers agem segundo uma espécie de padrão. Como se algo estivesse pré-definido e são atraídos apenas por sexo. Logo, nada de relacionamentos sérios. Os outros relacionam-se normalmente tanto com mulheres cis como trans. Convém frisar que, numa sociedade como a nossa, ter um relacionamento assumido com uma mulher trans não é bem-visto com todas as implicações sociais, familiares e de amizade que isto implica. Eu, como mulher trans, estou habituada a ser discriminada e que as pessoas se aproximem de mim já com preconceitos e pré-conceitos do que eu supostamente sou. Um homem que se relacionasse comigo teria que se sujeitar a ser, ele próprio, discriminado apenas por estar comigo.

Nunca tive a sorte, como Janet Mock por exemplo, de encontrar um homem que me aceitasse como sou, e que gostasse de mim o suficiente para se relacionar comigo e enfrentar estas batalhas diárias. Mas a vida é assim mesmo, e não podemos nem pedir e muito menos exigir a alguém que está connosco que se meta na boca do lobo. Ainda por cima, porque muito poucos são os homens que suportam este tipo de pressão constante. (Segundo o post de Janet Mock, nos EUA alguns dos homens famosos que chamaram a atenção por "também" se relacionarem com mulheres trans foram, por exemplo, LL Cool J - da série NCIS Los Angeles e Eddie Murphy).

Não somos nós, mulheres trans, que estamos mal. É toda uma sociedade construída em pilares de uma moral judaico-cristã que está mal. Enquanto se educarem as crianças como se (des)educa que as coisas não vão mudar. O cor-de-rosa para as meninas e o azul para os meninos implica muito mais do que apenas uma estúpida forma de construir o rebanho dos preconceitos. As crianças têm que ser livres para se desenvolverem, e livrá-las de estereótipos que só as vão prejudicar pessoal e socialmente no futuro.

Infelizmente, não vejo muita coisa melhorar. Algumas pioraram até nos últimos anos. Portanto, e apesar de querer ser optimista em relação a estas novas gerações, a minha experiência e o que vejo todos os dias leva-me à conclusão contrária. Há cada vez mais intolerância e falta de respeito por quem é diferente. E eu não sou diferente. Apenas dizem que sim, porque nasci numa sociedade podre e que não tolera a suposta (e inexistente) diferença. Somos todos seres humanos e está mais do que na altura de fazermos o que sempre devíamos ter feito: respeitarmo-nos.

Foto de Pedro Medeiros, 2014; Filtro com a Transgender Pride Flag criada por Monica Helms em 1999 (EUA).

sexta-feira, maio 15, 2015

A solidão do ser(-se assim)

Quando, ao longo da tua vida, sentes-te só e tens a sensação nítida de que não tens com quem falar, alguém que te entenda, que te compreenda, e que parece que estás a falar numa língua alienígena qualquer, é simples a conclusão: és trans como eu.



A solidão de uma pessoa trans, uma mulher no meu caso, é algo que se mantém desde a mais tenra idade e percorre todas as etapas da tua vida. Atenção que não estou aqui a falar da experiência de vida de outros, apenas da minha. Há até quem não sinta essa solidão, nem essa necessidade de falar, de encontrar empatias, de desabafar.

Mas eu sempre precisei de me exorcizar de mim própria, pois esta sociedade putrefacta transfomou-me, desde cedo, numa pessoa tóxica, numa freak, num "aborto da natureza" como já várias vezes me chamaram. E eu sempre procurei na minha introspecção um escape a tudo isto. Só que depois da introspecção vem a parte da verbalização, e aí é que sempre surgiram problemas.

As pessoas, por mais próximas que estejam de ti, não querem saber, aliás, preferem não saber, não se conseguem empatizar com o que sentes, obviamente não conseguem meter-se na tua pele. Mas às vezes basta um ouvido amigo, alguém que lá está e que apenas te ouve, e que te entende, tu sabes que sim. Mas estes foram casos quase inexistentes na minha vida.

Tenho mais facilidade, neste momento, em falar para um público, uma audiência, do que para uma pessoa, por mais próxima que me esteja. Tenho mais facilidade em falar de mim e da minha vida íntima e privada para uma entrevista, do que com alguém que está interessado em me conhecer.

Estou farta de ser julgada, de ser humilhada e mal-interpretada. Cada cabeça sua sentença, e ninguém é obrigado a gostar ou dar-se comigo, como eu também não sou obrigada a gostar e a dar-me seja com quem for, o que já me prejudicou na vida. Sim, porque a hipocrisia e o cinismo abrem portas. Só que eu não estou à venda, obrigada.

Como perceberá quem quiser ver o vídeo da Lóbula colocado no final deste post, não tenho quaisquer problemas de falar de mim. Exorcizo-me, faz-me bem, e acima de tudo, pode ajudar outras pessoas trans que estarão a passar pelo mesmo. A palavra é uma arma, e é a única que eu tenho e uso. Não falo tonterias, nem por falar. Falo em consciência e plena de convicção de que há muita gente a sofrer horrores neste momento apenas por ser quem é. Vergonhoso.

Aqui fica então o segundo vídeo do Arquivo Queer da Lóbula, em que falo eu e a Eduarda Santos (somos ambas fundadoras do GTP - Grupo Transexual Portugal). Eu num tom mais intimista, a Eduarda num tom mais político. Enjoy.



quinta-feira, maio 07, 2015

A perda da inocência

As pessoas são sacanas, más e frias. Mais cedo ou mais tarde, qualquer um de nós se apercebe disso. A divina trindade dos nossos dias é poder-sexo-dinheiro. Através de qualquer um destes pólos facilmente se obtém o outro e isso é o que importa. Aquela teoria, muito discutida aliás, de se nós nascemos inerentemente bons ou maus, não faz sentido num mundo, em que qualquer que seja a cultura ou sociedade, só há desrespeito e violações permanentes daquilo a que chamamos "direitos humanos".



Fui muito ingénua e até naive durante a maior parte da minha vida. Via nos outros boas pessoas, que me compreendiam, que empatizavam comigo, etc. Até que surgiu o momento da minha transição e tive que começar a contar às pessoas mais próximas quem eu era, na realidade. E isto tudo em busca de apoio, carinho, compreensão. 

O que recebi em troca foram virares de cara, conversas de que eu "estava confusa", humilhações, ofensas. E isto da parte de quem me estava mais próximo. Da parte de pessoas que eu julgava conhecer e de quem eu gostava. Foi só aí, aos vinte e tal anos que comecei a aprender. A aprender que as pessoas não prestam, só pensam nelas e no que podem ganhar contigo, dando-se contigo.

Fiz o meu percurso de transição para a mulher que eu sou hoje, e vejo que pouco mudou. O cinismo e falsidade das pessoas mantém-se. O egoísmo e egocentrismo choca-me, na busca incessante que têm pelo seu próprio umbigo. Na minha opinião, ninguém nasce bonzinho e a querer ajudar e ser amigo dos outros. Nós somos animais e isto é uma enorme selva. Como tal, a maioria das pessoas usa tudo o que pode e não pode para atacar. Afinal, sempre se disse que a melhor defesa é o ataque, certo?

Pois. Mas eu nunca fui, nem vou por aí. Tenho a minha natureza, boa ou má, mas de respeito para com os outros, quer concorde ou não com eles, quer sejam bons ou maus. Não me faltem é ao respeito e nem me passem atestados de estupidez. Posso ser muita coisa, e já fui chamada (e continuo a ser) de muita coisa horrível por pessoas que, apesar de algum tipo de ligação, nunca me conheceram, mas mantenho a minha integridade e dignidade impolutas.

É triste perder a minha inocência e visão bela do mundo humano desta forma, mas, para sobreviver, fui obrigada da pior maneira a fazê-lo. Hoje em dia posso estar velha, fanada e feia. Mas isso não é relevante. O que é relevante é que fui obrigada a afastar-me da maioria das pessoas para manter a minha sanidade mental e emocional. O que interessa é que sou eu, ainda, e apesar dos pesares. E é isso, a minha essência como mulher, como ser humano, que os outros, sejam quem forem, têm que respeitar.

E termino esta reflexão com o célebre provérbio português, que o Mourinho "traduziu" para inglês:: "The dogs bark but the caravan passes" (Os cães ladram mas a caravana passa).