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Sou uma mulher transexual de Lisboa, Portugal, onde nasci e cresci. Neste espaço poderá encontrar pensamentos, reflexões e comentários inerentes à minha vida como mulher trans. Seja benvind@ ao meu cantinho.

terça-feira, dezembro 04, 2012

O que os outros esperam de ti

O que se passa quando supostamente tu não correspondes ao que os outros esperam de ti.
Nasci. Não devia ter nascido, mas lá aconteceu. Depois fui crescendo como uma criança inadaptada, pois aquilo que os meus pais esperavam de mim não era aquilo que eu lhes dava.
Queriam um filho, um rapazinho, e eu não era filho, era filha e comportava-me em tudo menos como um rapazinho. A reacção deles era má, péssima. Ter uma criança que é socialmente diferente das outras não deve ser fácil de entender, compreendo. Mas não tinha culpa. Eu era como era e não sabia nem podia agir de outra forma.

Na adolescência foi o pesadelo. O corpo que era andrógino começou a mudar. Os pêlos a nascer, o peito que não crescia, e aquela genitália, a que estava habituada, continuava lá. No fundo, acho que tinha a esperança que aquilo caísse ou algo do género quando o meu corpo mudasse. Só que não mudou para o que eu queria.
E, no meio destas confusões internas, o preconceito e a discriminação daqueles que me rodeavam e que já viam em mim aquilo que eu ainda não tinha consciencializado. Sofri horrores na porcaria de liceu onde fui parar, os poucos que estavam próximos de mim foram-se afastando para eles próprios não serem discriminados. Esperavam de mim um rapazinho (para variar) menos andrógino na forma de ser e estar e calhou-lhes uma pessoa indefinida no aparente ser e de modos efeminados. Que vergonha!

Já na idade adulta tive a perfeita noção de quem era e do que esperavam de mim. E era exactamente o mesmo que na minha infância e adolescência. Só que aí eu já podia dizer uma palavra. E disse. Não só uma, mas várias. Áqueles que esperavam de mim um gay, mostrei-lhes por A mais B que isso não era possível, pois eu não era, nem nunca tinha sido, um homem. Áqueles que esperavam de mim uma pessoa feliz e contente, mostrei-lhes que eu não era assim e nunca seria, pois não vejo onde pode estar a felicidade ou alegria de ter nascido de uma forma errada. Áqueles que achavam que cirurgias, hormonas e a cirurgia de redesignação sexual me mudaria, mostrei-lhes que não, nunca, pois era eu que estaria dentro deste corpo, sempre. E que a minha essência como mulher é aquilo que interessa (ou deveria interessar) aos outros, e não se tenho ou não mamas e se em vez de um pénis tenho uma neovagina.

É que no fundo, tudo se resume áquilo que tens no meio das pernas (e não me refiro aos joelhos). Em vez de seres vista como uma pessoa, és vista como algo indefinido e que só se define se souberem que genitália tens. Que disparate tão grande! Com este tipo de experiências de conversa e relações falhadas, além do péssimo ambiente familiar, cheguei à conclusão que a fonte está toda naquilo que és, não no que aparentas ser, apesar da suposta concordância da maioria de que assim é. Mas na realidade não é. As pessoas julgam-te pelo que vêem, não pelo que conhecem de ti. Aliás, na maioria das vezes nem sequer lhes interessa conhecer, quando se apercebem que tu és trans.

A transfobia, o medo que as pessoas sentem deste suposto desconhecido é tal, que preferem ofender-te ou maltratar-te a tentar conhecer-te. E não é trocando um pénis por uma neovagina que isto muda. Basta ver os casos de tantas mulheres transexuais operadas que são figuras públicas por esse mundo fora, que nunca, mas nunca se livram do eterno estigma. Não interessa se elas anatomicamente são iguais a qualquer mulher cissexual. O que interessa, como costuma dizer este bando de energúmenos é que "ela era homem". Pois, só que ela nunca foi homem. Mas entender isto e fazer passar a mensagem não funciona. A ignorância parece que se pega, e acho que muita gente faz gala em ser ignorante. É mais fácil assim.

É como é mais fácil dares-te com uma pessoa que, além de mulher, é transexual e vive bem com isso, anda sempre alegre e contente, como se o mundo fosse cor-de-rosa e a maioria esmagadora das pessoas fosse maravilhosa. Sim, é bem mais complicado falar e conhecer uma pessoa que, por acaso é mulher e transexual, e que não vive feliz e contente, e que tem perfeita noção da porcaria que por aí anda e que reage, pensa e, ainda por cima, é uma pessoa depressiva. E que não gosta que lhe passem atestados de estupidez, responde à altura a provocações e batalha por aquilo que quer.

Ou seja, e para resumir, nunca correspondi ao que esperavam de mim, nem correspondo. Mas não é por aí que vou. Vou pelo caminho de poder ser eu própria, triste, alegre, lúcida, incongruente, depressiva, bem-disposta e por aí fora.
Sinceramente, estou-me a borrifar para aquilo que os outros esperam de mim. Julgam-me sem me conhecer e sem me ouvir, não me aceitam como sou, discriminam-me diariamente. Reagem a mim como estão habituados a reagir com os animais do zoo ou do circo. Só que eu não sou nem um bichinho, nem sou igual a ninguém. E, sinceramente, prefiro estar só, a estar acompanhada apenas para não estar (fisicamente) sozinha.

Só há uma pessoa a quem tens que agradar neste mundo. E essa pessoa és tu. Não te iludas com os outros, vive a tua vida e age de acordo contigo, não com o que os outros esperam de ti. Porque, se seguires o caminho que os outros te indicam, nunca serás tu.
Por isso mesmo, e porque segui o caminho que quis para mim, só me arrependo das poucas alturas em que não o fiz. E se sou agressiva, fria, triste, depressiva e tantas coisas agradáveis que me estão conotadas por pessoas que nem me conhecem, isso só se deve a mim e assumo-o com todo o gosto.

Nasci como nasci. Ninguém teve culpa. Agora sobrevivo a isso como posso. Mas não me venham é culpar a mim!

2 Comments:

Blogger Sandra M. Lopes said...

Se se pudesse dizer que as expectativas (e as decepções quando essas expectativas não são correspondidas) só se aplicam à transsexualidade, bem, eu ainda poderia pensar: ok, são apenas uns poucos que sofrem.

Infelizmente não é assim. Todos nós criamos uma imagem das pessoas que vemos, e criamos expectativas em relação a essas pessoas. Quando essas expectativas são goradas, ficamos tristes. O que não percebemos é que as nossas expectativas vão sempre ser goradas, porque não estamos a projectá-las sobre uma pessoa: mas sim sobre a imagem que fazemos dessa pessoa. É este o duplo problema!

Claro que a culpa não é da pessoa que não correspondeu às expectativas. Ela, se calhar, até nem fez nada. Mas na cabeça de quem a observa é que «se fez o filme todo» — imaginou-se que X era Y (quando sempre foi X), e que X deve fazer Z (quando sempre fez K), e que isto e aquilo...

Faz parte da forma deludida como andamos pela vida. Estamos constantemente a criar imagens sobre as outras pessoas e a gerar expectativas sobre elas. O pior é que também o fazemos para nós próprios. E aí é que a porca torce o rabo...

Ou talvez não. Não podemos fazer nada em relação aos outros, mas podemos fazer imenso em relação a nós próprios. Gerar expectativas é uma escolha. Uma escolha estúpida, porque nunca vamos conseguir estar à altura dessas expectativas. Em contrapartida, podemos escolher não gerar expectativas nenhumas. Aí já não sofremos. Ficamos imunes. E até ficamos imunes às expectativas que os outros têm sobre nós: é que deixam de nos afectar, quando deixarmos de ter expectativas sobre os outros.

É no entanto verdade que isto é mais óbvio em certas circunstâncias. Talvez a transsexualidade tenha pelo menos essa virtude: revela claramente que as coisas são assim. As restantes pessoas cisgénero se calhar nunca se aperceberam das expectativas que estão constantemente a gerar em realação a tudo, aos outros, e em relação a elas próprias; as transgénero, porque têm de sofrer na pele a discriminação, acabam por reparar nisto muito mais cedo que as outras pessoas.

Mas talvez possamos daí tirar uma lição, aprender a largar as expectativas, e, se o conseguirmos, ensinar aos outros o que fazer. Mesmo que os "outros" sejam cisgénero transfóbicos.

fevereiro 01, 2013 1:33 da manhã  
Blogger Unknown said...

LOL, essa de não se criar expectativas é muito naive, não?

fevereiro 03, 2013 8:52 da tarde  

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