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Sou uma mulher transexual de Lisboa, Portugal, onde nasci e cresci. Neste espaço poderá encontrar pensamentos, reflexões e comentários inerentes à minha vida como mulher trans. Seja benvind@ ao meu cantinho.

domingo, dezembro 13, 2015

Saudades da vida que não tive

Num mundo cada vez mais caótico e em que as crises de valores são mais que muitas, sobreviver como uma outsider torna-se cada vez mais difícil.



Em criança sempre me apercebi da minha diferença em relação às outras crianças. Lembro-me muito bem de cada pormenor, de cada detalhe, de cada estalo, de cada humilhação, de cada castigo que sofri apenas por ser quem sou. Isto prolongou-se até à adolescência e depois por aí fora, obviamente já revestido de outra roupagem.

Sempre quis eliminar essas lembranças, esses pensamentos e muito raramente falei neles. Para mim existia e existe apenas uma parte da minha vida a recordar: a idade adulta e principalmente a fase da transição e pós-transição. O resto é merda, não interessa. Ou pelo menos era assim que eu gostava que fosse. Mas os fantasmas do passado vêm sempre assombrar-nos o presente.

E numa fase em que tudo ou quase se põe em questão num mundo em ebulição social e humana, eu própria me ponho em causa no sentido do que estou aqui a fazer. Ser uma pessoa que não se enquadra nos padrões sociais da normalidade leva-me a ter uma vida de outsider. A evitar o contacto com os outros. A tentar evitar a violência psicológica e física de que já fui vítima assim como a esmagadora maioria das mulheres que nasceram como eu e que o assumem.

Difícil, difícil é encontrar empatia, entendimento nos outros. É encontrar quem te dê um ombro e quem converse contigo, quem te entenda, quem te surpreenda por te fazer ver que também fazes parte deste mundo. Encontrei poucas pessoas assim ao longo da minha vida. E, hoje em dia, muito poucas conheço que assim sejam e que ajam de forma correcta em relação a mim.

E, numa fase em que as coisas não correm bem, mais falta sentes ainda dessas pessoas, de pessoas que são empáticas contigo e que te mostram que viver ainda vale a pena. Depois de duas pessoas muito importantes na minha vida terem estado gravemente doentes quase em simultâneo e de agora ser eu quem está doente, sinto-me demasiado desprotegida e vulnerável. As emoções são muito fortes, tudo parece exacerbado. É como uma tempestade que não tem fim à vista. 

Tenho saudades da vida que não tive. Gostava que as coisas tivessem sido de forma diferente. Provavelmente todos nós gostaríamos. As pessoas têm a mania de dizer que não se arrependem de nada. Eu não. Arrependo-me de imensa coisa e teria feito imensa coisa de forma diferente. A única coisa que nunca teria feito de outra forma era assumir quem eu sou, uma mulher, independentemente daquilo que os outros digam, façam ou pensem.

Esta sensação de estar perdida num mundo que não me parece meu tem coisas positivas. Como ver mais claramente como os outros são. E, principalmente, ver com mais clareza como eu sou.

---> Foto © Pedro Medeiros, Lara Crespo, Cais do Ginjal 2014