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Sou uma mulher transexual de Lisboa, Portugal, onde nasci e cresci. Neste espaço poderá encontrar pensamentos, reflexões e comentários inerentes à minha vida como mulher trans. Seja benvind@ ao meu cantinho.

sexta-feira, junho 03, 2011

Lavar a alma: Gisberta e o "bullying"

Ultimamente, não se tem visto outra coisa nos telejornais e em todo o tipo de média que não casos do recentemente chamado "bullying". Ele é a rapariga violentamente agredida por duas mais velhas, é o fuzileiro espancado pelos colegas, é mais uma miúda agredida e colocada dentro de um contentor de lixo por colegas da escola, enfim, parece que de repente se acordou para algo há muito adormecido, e que, quer queiram quer não, sempre existiu.

E o bullying constante e eterno que uma mulher transexual como eu sofre? Atenção que não estou a menosprezar a importância e gravidade de todos estes casos e de muitos outros de que não se sabe, mas convém deitar aqui umas achas para a fogueira, relembrando o infeliz caso de Gisberta Salce Júnior, mulher transexual tal como eu. E eu penso muitas vezes que no lugar dela poderia estar eu. E que o bullying que ela sofreu durante três longos dias e que culminou com a sua trágica morte poderia ter sido evitado. E que me pode acontecer o mesmo.

Para quem não se lembra, Gisberta foi violentamente agredida por um grupo de adolescentes, que além da porrada, a violaram, enfiaram-lhe paus pelo anús, tentaram estrangulá-la, tentaram atear fogo ao seu corpo pois pensaram que, após três dias de tortura, ela já estava morta, mas como não o estava, decidiram atirá-la para um poço cheio de água no prédio em construção onde ela "morava". Gisberta morreu afogada.

Gisberta poderia ter morrido de qualquer uma das doenças que minavam o seu enfraquecido corpo. Com o HIV veio a tuberculose, a hepatite B, a fraqueza geral, a incapacidade de reagir. E essa matilha de animais (peço desculpa por ofender todos os bichos, mas não me ocorre outra palavra) matou-a sem piedade que ela tantas vezes pediu ao longo dos três longos dias, e todos escaparam sem uma condenação, pois segundo o auto, "foi a água que matou Gisberta".

E é neste mundo que vivemos. Gisberta era uma mulher transexual. Talvez se não o fosse as coisas tivessem sido diferentes. E eu penso no bulying que sofro desde criança. E o futuro assusta-me. Tenho medo de sair sozinha à rua. Antigamente enfrentava com mais desfaçatez esse medo. Hoje em dia a minha consciência da verdadeira natureza humana face ao desconhecido faz-me temer pela minha integridade física.

Não tenho vergonha nenhuma nem pudor em afirmar que é um risco enorme ter-se o azar de nascer transexual numa sociedade como esta. Lembro-me de ter uns quatro, cinco anos, e de ir brincar para a rua com outras crianças da minha idade. Provavelmente por já ter um tipo de comportamento diferente dos outros meninos, fui selvaticamente espancada por todos eles, que eram uns cinco, e lembro-me nitidamente que um, em particular, me deitou as mãos ao pescoço, me fez cair de costas no chão, arrancou-me carne dos ombros e cara e mordeu-me com toda a força. Não sei como, consegui fugir, e em lágrimas abracei-me à minha mãe e irmã, que estavam em casa e me trataram dos ferimentos, enquanto gritavam pela janela com eles, que zombavam e mim e me chamavam nomes.

E cenas deste género foram-se repetindo ao longo da minha infância e adolescência. Fui constante e permanentemente vítima de bullying. Isso fez de mim uma pessoa marcada. Fiquei mais desconfiada, mais fria, mais insegura, mais medrosa. E isso transformou-me. Não o posso negar. Nunca me vou sentir como pertencendo a algum sítio ou local. Nunca vou sair para a rua com total segurança. Nunca me vou sentir eu com toda a força da palavra "eu".

"Elas não matam, mas moem", já lá diz o antigo ditado. E o que julgava ter ultrapassado ao longo dos anos deixou marcas. Muitas cicatrizes naquilo que sou. Mas não me vão pisar mais como o fizeram ao longo de quase toda a minha vida. Se cheguei aqui, vou-me esforçar por continuar. Mas não serei a mesma que fui. Não serei. Nunca mais.

4 Comments:

Blogger Micaela Maia said...

Cara Lara, não posso dizer que imagino o que sentes, mas quero dizer que por favor te centres nas pessoas que não têm problemas com os mistérios da natureza, que só o são até a ciência dizer que são "factos científicos". Centra-te nas pessoas inteligentes e tenta fugir e ignorar os deficientes afectivos que poluem esta nossa Terra. Tomara eu que lhes caísse um raio na cabeça que lhes abrisse o cérebro e plantasse novas ideias. O caso da Gisberta Salce não foi esquecido por muita gente, que sente a mesma repulsa, a mesma trsiteza e revolta que tu. Bem hajas, miúda.

junho 03, 2011 6:57 da tarde  
Blogger vera said...

Estive o dia todo a digerir o que escreveste... não é que não tenha noção das mentes preservas e doentes que por aí vagueiam. É mesmo não saber lidar com tamanha violência, com tanta dor... É ter vontade de te abraçar, de te dar mimos e juntas nos aninharmos para que nada nem ninguém te magoe mais!

junho 03, 2011 11:05 da tarde  
Blogger Lara Crespo said...

Começo por agradecer os vossos comentários, Micaela e Vera. É bom poder repousar quando leio palavras assim, que me afastam um pouco da dura realidade que existe lá fora.
Estive muito tempo para escrever sobre isto, mas acho que esta foi a altura certa para o fazer.
Micaela: obrigada pelas tuas palavras frontais e amáveis, pela forma como entendes a minha dor e acredita que tento rodear-me de inteligência e deixo cair as teias da ignorância e estupidez alheias. Muito obrigada e um beijinho muito grande.
Vera: muitas vezes é difícil dizer aos outros aquilo que sentimos, como tu sabes. Estamos numa sociedade doente, ultrapassada e ignorante. Tu és uma pérola de sensibilidade e emotividade que eu tive e tenho o prazer de conhecer. Sempre, desde o primeiro momento, gostei de ti e dessa tua forma tão linda de ser e de viver. Frontal, sensível, emotiva, viva e inteligente. Chorei quando li o teu comentário, pois um turbilhão de coisas veio-me à mente. Mas sorri quando me lembrei que, de tudo isto, a tua pequenina tem uma imensa sorte e felicidade: ter uma mãe que não poderia ser melhor, em nada. Com maior respeito e imenso carinho que nutro por ti, aqui te deixo um muito, muito obrigada, e um beijo do tamanho do universo. Obrigada por fazeres deste um mundo melhor!

junho 04, 2011 4:56 da tarde  
Blogger Paulo said...

Olá Lara,
Não nos conhecemos, mas depois de ler esta mensagem, senti necessidade de escrever algo.
E, olha, espero que não te importes, mas vou tratar-te por tu. Afinal, depois de ler o que escreveste, sinto que te conheço um bocado, e o tratamento por você soar-me-ia demasiado frio e distante.Espero que não te importes.
Em primeiro lugar, o caso da Gisberta chocou-me na altura, como acho que deveria chocar qualquer pessoa com um mínimo de sensibilidade e empatia por outro ser humano. É é sempre bom lembrar estas coisas, talvez o mundo mude um bocadinho de cada vez que falamos nisto. Só um bocadinho.
Depois, a descrição que fazes do que te aconteceu em criança, mexeu muito comigo, tocou um nervo.
Porque sou pai de um menino lindo com 5 anos e, desde que ele nasceu, qualquer acto de violência contra uma criança ainda se tornou mais vil e repugnante para mim, imagino sempre o meu filho nessas situações e custa-me muito.
E depois, a relação com o teu pai... Tudo isso é triste, injusto, e para mim não faz sentido nenhum.
Considero que as pessoas devem ser julgadas pelas suas qualidades e defeitos, não por terem nascido com esta ou aquela cor da pele, com esta ou aquela orientação sexual.
Repito: Não me conheces, mas senti necessidade de escrever algo.
Lembra-te que há pessoas e pessoas... Não somos todos iguais.
Um abraço.

junho 08, 2011 11:19 da tarde  

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