O estigma e a minha auto-estigmatização
Depois de algumas "décadas" sem postar aqui nada, eis-me de volta com a brisa do Outono. Aviso já que, como sou uma mocinha nada politicamente correcta, vou continuar a chamar os bois pelos nomes, e também vou continuar a escrever português como sempre escrevi, não adaptada ao chamado "acordo ortográfico".
Agora vamos a um assunto polémico que muito me tem feito pensar ultimamente, e sobre o qual já postei aqui algumas coisas, apesar de revestidas de outros factores, ou com outros nomes: afinal, porque somos nós estigmatizadas, porque o somos mesmo, quem nos estigmatiza, e porque, muitas vezes, nos auto-estigmatizamos.
O estigma é algo que nos marca desde a nossa nascença. Pelo menos foi assim no meu caso. Tal como nasci com um sinal particular num dedinho do pé, o tal do estigma veio junto. Desde criança pequenina que tenho memórias de ser discriminada (sim, porque o estigma leva à discriminação) tanto pela minha família próxima, como pela outra família, como pelos miúdos que brincavam na minha rua, como pelas pessoas que me viam na rua com a minha mãe.
Havia algo de inatamente feminino em mim que transparecia de tal maneira que eu nem sequer me apercebia. Mas os outros sim. Quem não sabia, partia do princípio que eu era uma menina (e era, pois é meus amigos), quem sabia que eu tinha nascido com genitália masculina gozava-me, humilhava-me, batia-me, etc, num ciclo sem fim. E nestas pessoas incluem-se as da família. Obviamente, quem sempre me protegeu mais foi a minha mãe, mas foi também ela que nunca me deixou libertar do estigma. Não me deixou esquecer. Mas, se assim fosse, talvez eu não estivesse agora aqui a escrever sobre isso.
Lembro-me de um episódio curioso, passado no liceu que frequentei até ao 11º ano, o D. Pedro V, em Lisboa. Eu teria uns 14, 15 anos e era vítima constante e continuada do que hoje em dia se chama de "bullying", mas que sempre existiu, como todos sabemos, quer sobre vítimas mais "diferentes", quer sobre os mais fracos e por aí fora. Eu estava num furo entre aulas e descansava ao sol de uma amena Primavera, sentada num banco sossegadamente. O principal grupo de rufias que me perseguia constantemente aproximou-se sem que eu desse por isso. Eu era uma, eles eram cinco. Nem sei bem como, arrastaram-me para uma zona escondida por arvoredo (dentro da escola), e o "líder", um puto adolescente loiro e gordo, quase da minha altura (sim, eu já era bem alta e espigadota nessa altura) decidiu que me iam despir para ver que sexo é que eu tinha entre as pernas.
Em pânico e sem poder pedir ajuda, fui tentando afastar as mãos deles do meu cinto, das minhas calças, do meu corpo. Quatro deles, incluindo o gordo obviamente, discutiam o que me faziam depois de me despirem. Um, já com barba e mais tímido, ia pedindo que se afastassem e fugissem, pois podia aparecer alguém. Conseguiram tirar-me o cinto. Entrei em pânico enquanto as calças me escorregavam ao longo das ancas. O gordo não parava de me tocar, enquanto os outros me agarravam. Eu já via o final que aquilo ia ter. Era óbvio. Mas não. Por algum acaso dos deuses, o barbudo conseguiu convencê-los, assim que se ouviu o toque para o intervalo. Poderia, realmente, aparecer alguém. E eu fui, dessa vez, salva pelo gongo.
Porque escrevo sobre isto agora? Porque acho importante que se compreenda que situações como esta servem para que nos fechemos ainda mais em nós, que nos auto-estigmatizemos, que nos sintamos mal, ao contrário do que, supostamente, deveria acontecer. Sim, porque quem deveria ter sido punido por isto seriam eles, não eu. Mas em última análise, fui eu que me puni sempre com as desventuras que me foram acontecendo ao longo da vida. Fui eu que me auto-estigmatizei. E sim, não me considero uma mulher igual às outras. Sou uma mulher diferente. Sou uma mulher marcada pelo estigma de ter nascido transexual e de ter que viver e sobreviver com isso, num mundo que não está preparado para a diferença em aspecto nenhum.
Vejo os olhares na rua, agora que já vou a caminho dos 40 anos. Vejo as teorias ridículas e estapafúrdias às quais atribuem a transexualidade. Vejo a atitude dos tlovers em relação a mim. E tudo isto me estigmatiza ainda mais.
Circulo muito na net. Como toda a gente que lê este blog sabe, conheci muitos homens pela net. Com uns tomei café, com um namorei, com outros tive flirts passageiros. Mas é impressionante a quantidade de preconceito e pré-conceito que existe na cabeça destes homens e dos outros (aqueles que só vêem "os bonecos" e não se dão ao trabalho de ler o meu perfil). Para os tlovers, tudo bem, "fixe que és trans". Na realidade, quando eles se referem a mim como sendo trans, não é no sentido de mulher transexual, mas sim no sentido de travesti (homem que se veste de mulher), mas nem eles, em geral, têm consciência disto. Para os que não lêem, ou não me conhecem de todo, é incrível como o tom de conversação muda quando eu lhes revelo que sou transexual. Uma conversa agradável de três horas pode tornar-se numa pornochanchada de três minutos. E a preocupação é sempre uma: "mas és operada?", ou então "vais operar-te, não vais?"
O mais ridículo disto tudo é que eles nem sequer sabem se sou operada, ou o que isso significa: (meaning: fazer a Cirurgia de Redesignação de Sexo - CRS ou em inglês - SRS). Não, não sou operada. Sou uma mulher transexual não-op como os americanos adoram rotular. Ou uma mulher com mamas e genitália masculina, como escrevem e dizem outros. E depois? Para esses que não leram o meu perfil, a partir do momento em que eu refiro a minha transexualidade, passo a ser uma "coisa esquisita", independentemente de ser operada ou não. Se eu dissesse que sim, mudaria alguma coisa? Decerto que não, e já tive provas disso, comigo e com outras mulheres transexuais que se operaram e que, mesmo assim, continuam e continuarão a ser estigmatizadas.
Porque o fulcro da questão nestas mentes transfóbicas não é a vagina em vez do pénis. Não! É o facto, de como eles dizem "já teres sido homem". Mas, muito sinceramente, o que é isto? Já fui homem??? Quando???
Ou o clássico "então és homem". Sou "homem" porquê? Porque o meu corpo possui características genitais masculinas? Então quer dizer que sou sempre presa por ter cão e presa por não ter. O estigma está lá. Esta estória ridícula do foste homem, ou és homem, ou coisa que o valha não faz qualquer sentido veja-se porque prisma se vir. Só faz sentido em mentes transfóbicas, que, infelizmente, são a maioria esmagadora, e que estão entre a nossa própria família.
O meu estigma está cá e estará sempre. Mas eu também me auto-estigmatizo. Agora, isto não implica que aquilo que eu sou se reduza ao que tenho entre as pernas. Aliás, não admito que ninguém me reduza a isso. Sou uma mulher, sei-o e sempre o soube. Sinto-o e sempre o senti. A minha alma é feminina, não masculina. Sou sensível, inteligente, teimosa e com mau-feitio e muitas coisas mais. Mas nunca, nunca, me reduzam a um ridículo esterótipo do que uma mulher deve ou não ser. Como eu afirmei numa entrevista que dei ao Jornal i, "o sexo está na nossa cabeça, não no meio das pernas". Afirmei-o e hei-de afirmá-lo sempre. Faço apenas um reparo, com um acrescento: o nosso sexo e o nosso género. Nestes moldes sou mulher. E quero ver provarem-me o contrário.
2 Comments:
Não é fácil lidar com os preconceitos ou os estigmas, tanto da parte de quem os sofre na pele como de quem os pratica, tão enraízados estão na nossa cultura e educação, por muito que nos digamos evoluídos e modernos, correndo muitas vezes o risco de o fazermos mesmo que não seja essa a nossa intenção. Entendo que não seja fácil, como não é fácil a vida seja para quem quer que seja, independentemente das nossas diferenças culturais, raciais, sexuais que nada mais são que pormenores, meros detalhes naquilo que todos somos: gente, com os mesmos sentimentos, esperanças, sonhos e desilusões. Não entendo - é-me difícil - a diferença como algo que nos distancia ao invés de nos aproximar e porque devemos ter receio de nos mostrarmos como somos devido à opinião dos outros, das palavras que não raras vezes doem mais que paus e pedras. Uma boa semana.
Cara Lara, parece-me que os hábitos incorporados por toda uma coletividade, muito mais do que a questão da genitália sexual, vão te impedir sempre de ser uma mulher plena na multidão. A falta de um reconhecimento social sempre mancha um pouco aquilo que pensamos de nós mesmos e a plenitude que almejamos alcançar quando estamos sozinhos. Sempre te faltará um pouco de chão e te sobrará razões para não seres conformista e refletires sobre o mundo em que vives.
O preconceito contra as transexuais passa por três pontos de partida bastante enraizados: 1) o de que não se pode mexer no próprio corpo, como se este fosse um templo sagrado e incólume; 2) o de que o homossexualismo é inferior e menos natural que o heterossexualismo; 3) o de que os hábitos mentais que separam o feminino do masculino são inatos e não adquiridos socialmente.
As transexuais incorreriam na transgressão dessas verdades incorporadas: elas modificam o próprio corpo; são, para muitos, "homossexuais" disfarçados; e, através das suas atitudes, tendem a revelar, para os que não se fazem de cegos e mudos, que a diferença entre os gêneros vai além das questões meramente biológicas.
O estigma com que os outros nos marcam acaba por fazer parte da nossa personalidade, nos fazendo retrair e nos roubando um pouco a esperança. Para resguardar uma beleza tantas vezes atacada é preciso, como muitas flores e alguns animais, adquirir certos espinhos e alguma camuflagem.
Não teria importância nenhuma ter nascido menino, se não fosse essa necessidade de espinhos ou de refúgio, estigmas com que nos marcaram os outros e que de certa maneira ajudam a moldar a nossa personalidade. Não sei se estou certo ou errado, mas agora me veio a comparação das minorias marginalizadas (ou dos amores marginalizados) com os pássaros noturnos. Eles são como corujas que giram a cabeça num raio quase circular, observando tudo, e tendo que voar em silêncio; ou como o Urutau, pássaro da lua, que se camufla nas árvores e nelas se confunde, para não ser visto e assim se defende dos predadores. O Urutau tem um canto triste, de estranha beleza, que parece soltar de dentro de si uma imensa solidão noturna.
Quem manda essa mensagem gratuita é um brasileiro de Recife, e que foi marcado pela impossibilidade de manter uma relação amorosa com uma mulher transexual. Pela minha personalidade um tanto retraída e pela família conservadora, teria dificuldade de admitir publicamente um amor desse tipo. Sei, porém, que se mantê-lo às escuras, ele morreria por falta de sol. Também não quero que meus desejos murchem ou se tornem fetichistas, ao se perderem no corpo de travestis de programa. O que me resta a fazer é cortar galhos verdes que em mim crescem, e mandar mensagens gratuitas pela internet, algo sem motivo nenhum (apenas porque me toca o coração e ainda estou vivo).
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