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Sou uma mulher transexual de Lisboa, Portugal, onde nasci e cresci. Neste espaço poderá encontrar pensamentos, reflexões e comentários inerentes à minha vida como mulher trans. Seja benvind@ ao meu cantinho.

quarta-feira, fevereiro 03, 2016

"A Rapariga Dinamarquesa" somos nós

Inicialmente fiquei um pouco de pé atrás em relação a ver o filme "A Rapariga Dinamarquesa" ("The Danish Girl" no original) de Tom Hopper, mas finalmente decidi-me a ir ver. Sem grandes expectativas, este filme mostrou-se uma peça fina de algo bem mais profundo do que uma mudança de pele - uma mudança de alma.



Desde que estreou, que "A Rapariga Dinamarquesa" tem dado muito que falar tanto lá fora, como cá, não só pelas pessoas trans, mas pelo público em geral. As pessoas trans, nas quais me incluo, questionaram a escolha de Eddie Redmayne para o papel de Lili Elbe, visto ser, mais uma vez, um homem cisgénero a representar uma mulher transgénero. Mas ao longo do filme ele realmente convence e está muito seguro num papel duplamente difícil: representar uma mulher transexual por um lado, e uma que foi real e não imaginada, por outro.

Redmayne sai-se, na minha opinião, muito bem, e está extremamente bem acompanhado por Alicia Vikander que está espantosa no papel de Gerda, mulher de Lili antes da transição e melhor amiga depois. Há coisas neste filme que vão muito para lá do que parecem à primeira vista. O facto de Lili se distinguir do "homem que foi" na parte inicial do filme, dando quase a ideia de uma dupla personalidade é perfeitamente credível para quem, como Lili é uma mulher transexual. Eu revi-me totalmente nesta dicotomia, pois eu própria separava as duas coisas ao longo de vários anos.

Tal como Lili, eu desenhava e pintava, criava figurinos de moda, cheguei a fazer desfiles em nome próprio (o de baptismo) e figurinos para dança e teatro. Ao longo da transição fui deixando de ter sequer vontade de pegar no lápis e nos pincéis, e após a transição nunca mais peguei em nada. É passado. Era uma vontade de me representar a mim própria naquelas telas, naquelas mulheres que vestiam roupas que eu criava. Agora já nada disso faz sentido. Já não preciso de me "representar" no papel. Agora já sou.

O mesmo se passou com Lili. Redmayne conseguiu imprimir-lhe um toque de suavidade e os gestos estudados na sua "pesquisa" não passam de querer tanto sentir-se como era no seu interior, que luta para que isso transpareça para todos aqueles que a rodeiam. Também não nos podemos esquecer que esta história de vida se passa no início do século XX na Europa do Norte, em que os hábitos e os costumes eram bem diferentes daquilo a que estamos acostumados. O simples facto de Lili ter surgido acabou por abanar todas as estruturas sociais da época e chegar aos nossos dias.



"A Rapariga Dinamarquesa" é um filme de uma sensibilidade requintada e bordada nos sentimentos e emoções de duas mulheres - Lili e Gerda. Tom Hopper meteu-se por um caminho que poderia ser muito escorregadio e perigoso mas saiu-se muitíssimo bem, na minha opinião. Tecnicamente, o filme é perfeito. Mas, muito mais importante que isto, emocionalmente é consistente e real. Comovi-me muito ao longo do filme, revi-me em imensas situações e estados de alma, e chorei compulsivamente no final, como não me acontecia há imensos anos. Esta Lili fez-me libertar fantasmas e recordações, fez-me sentir que por esse mundo fora há Laras, há Lilis, há toda uma panóplia de mulheres que lutam para ser o que são apenas porque não nasceram como deviam.

Este filme deu e continuará a dar que falar, mal ou bem, mas o que interessa, no fundo, é que ele existe e mostra que a luta de uma mulher trans se pode tornar numa luta de todas. Obrigada Tom Hopper.