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Sou uma mulher transexual de Lisboa, Portugal, onde nasci e cresci. Neste espaço poderá encontrar pensamentos, reflexões e comentários inerentes à minha vida como mulher trans. Seja benvind@ ao meu cantinho.

sexta-feira, setembro 09, 2011

Poeira dos tempos

Ultimamente tenho pensado muito no meu percurso emocional até à minha idade actual, os 40 anos.
Fui uma criança alegre, mas não feliz. Fui uma adolescente confundida com um mundo em que sentia não se encaixar. Fui uma mulher que se travestiu de homem durante tempo demais. Sou uma mulher madura, o que me traz alguns benefícios e também grandes inconvenientes, como ver com mais lucidez todo este percurso de vida até agora.

Sempre fui demasiado dada segundo os padrões sociais a que, pelos vistos, a esmagadora maioria das pessoas está habituada. Sempre fui carinhosa com as pessoas, cultivei muito a cultura do toque, coisa que as pessoas detestam. E eu aprendi isso e muito mais da pior maneira. Com rejeição, com agressão, com incompreensão.

Acho que todos nós nascemos muito vulneráveis emocionalmente (e não só). E com a aprendizagem do que, supostamente, está correcto socialmente lá começamos a enfrentar o mundo. Mas acho que, até aí, fui rebelde. Quis fazer tudo à minha maneira. Só porque me batiam na rua, na escola, porque haveria eu de bater de volta? Não percebia na altura. Só porque eu era carinhosa com alguém de quem gostava, porque é que essa pessoa reagia mal e me afastava? Seria eu uma melga? Muito provavelmente seria. Mas uma criança carente não aprende com rejeição como fazer as coisas, partindo do princípio que são as mais "correctas" politicamente ou não.

As lambadas começaram muito cedo. Quem tem acompanhado este blog já sabe disso, e para quem acabou de cair aqui de pára-quedas, eu sempre estive no local errado à hora errada. Aquilo que hoje em dia é chamado de "bullying" sempre aconteceu, como todos sabemos, e eu não fui uma excepção, muito antes pelo contrário. Mas pior do que ser maltratada por quem mal conheces é sentires-te maltratada por quem gostas.

Devido ao meu feitio e à minha personalidade, sempre tive tendência para agradar aos outros, ser simpática, risonha, meiga, enfim aquelas coisas que quem me conhece da net nem imaginava que eu poderia ser, e quem me conhece pessoalmente pode ter, ou não, uma noção de que a Lara é uma "boa pessoa" (whatever that means).

Dei demasiada confiança a toda a gente e paguei bem caro por isso. E este é o fulcro da questão. Não se pode ser sensível aos olhos dos outros. Não se pode dar sem pedir nada em troca. Não se pode ser e deixar ser. Não se pode confiar, porque te vão lixar à primeira hipótese. Porque este mundo não é feito de pessoas que nasceram "naturalmente boas". Acredito e quero acreditar que as há, mas a maioria nasceram "naturalmente más". E isso faz com que eu não possa confiar.

Se hoje em dia criei as defesas que criei, foi graças a um sem número de factores, desde ao facto de ser altamente discriminada por ser uma mulher transexual até ter dado demasiada confiança e ter acreditado nas pessoas. Sim, porque poucas são as pessoas em quem se pode acreditar. Poucas são aquelas que recebem um simples beijo teu na bochecha com um sorriso. Poucas são aquelas que te deixam chorar no seu colo quando estás triste.

Desiludida? Sim, estou muito desiludida com as pessoas. Nada de novo. Desiludi-me cedo, ou melhor dizendo, deixei de me iludir. E os anos passarem ajudou muito neste processo, porque sejam as outras pessoas A ou B, mais cedo ou mais tarde revelam-se. E eu estou cá para ver. E já vi muita coisa. Fui muito magoada, sem razão alguma. Acreditei em quem não deveria ter acreditado. Fui emocionalmente "sugada" por muitas pessoas que fazem do mal-estar dos outros o seu desporto favorito.

Sobrevivi. Tenho mazelas, obviamente. Tornei-me numa pessoa aparentemente diferente. Aprendi a proteger-me às minhas custas, sem ajuda de ninguém. E, hoje em dia, sei exactamente com quem posso contar ao meu lado. Já não vou em balelas, e odeio que me passem atestados de estupidez. Sim, porque eu posso ser muita coisa, mas estúpida não sou de certeza.

Fui e sou posta de lado só por ser quem sou? "Epá, a gaja tem mau feitio e tal, e ainda por cima é trans?" Meus amigos, por mim é na boa. Só desejo ao meu lado quem, na realidade, deseja esse posto. Quanto aos outros, sinceramente quero lá bem saber. Sejam quem forem.

Se há coisa que a vida me ensinou foi a separar o trigo do joio. E, apesar de tudo, tenho amigos. E isso é o mais importante, é o que me vai dando forças para continuar. Há pessoas que nunca deveriam ter nascido, e esse é o meu caso. Eu não nasci para viver neste mundo. Mas foi assim que aconteceu. E quando chegar a altura aí vou eu. Com a consciência totalmente tranquila.

E não, não dou o direito a ninguém, absolutamente ninguém, de me julgar ou opinar sobre mim sem me conhecer. E quando digo conhecer é mesmo isso "conhecer". Vai mais longe do que ver, do que observar, do que ouvir, do que ler. É olhar nos meus olhos e saber quem eu sou. Só a esses eu dou crédito. Quanto aos outros, os cães ladram e a caravana passa.

Com a lucidez da idade vem também esta certeza. Sou, fui e sempre serei a mesma com a minha verdade, para aqueles que também sempre o foram para mim. E só esses ficam. O resto é poeira dos tempos na minha memória.