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Sou uma mulher transexual de Lisboa, Portugal, onde nasci e cresci. Neste espaço poderá encontrar pensamentos, reflexões e comentários inerentes à minha vida como mulher trans. Seja benvind@ ao meu cantinho.

domingo, fevereiro 02, 2014

O mundo, os direitos e eu: uma pequena reflexão

Neste momento, aquilo que me surge diante dos olhos, e que só não vê quem não quer, é um aumento exponencial de tentativas de calar vozes e de branquear todo um percurso de anos, muitos anos, de activismo da parte da comunidade LGBTI. Exemplos: a loucura no Brasil à volta do primeiro beijo gay numa novela de horário nobre, o rebaixamento das mulheres trans em que se sente cada vez mais uma transmisoginia, e um aumento de violência contra quem pertence a esta extensa comunidade.

Nesta minha reflexão sobre o que se passa no mundo, não estão de fora o crescimento dos preconceitos contra as pessoas LGB e Trans, e a inequívoca discriminação que daí advém. Exemplos: no país do mundo em que mais mulheres trans são assassinadas, o Brasil, viu-se esta semana o primeiro beijo entre dois homens numa novela de horário nobre e foi a puta da loucura. É como se tivesse vindo tudo ao de cima. O preconceito e o recalcamento de tanta gente, tanto lá como cá, leva as pessoas a supostamente conspurcarem um momento bonito com palavras sem argumentos, com a religião (como não podia deixar de ser) em que nós todos, pessoas trans, lésbicas, gays, bissexuais vamos todos arder no inferno e tal.

O que é natural no ser humano, afinal não o é? Qual é a diferença entre um beijo entre um homem e uma mulher, um homem e outro homem, uma mulher e outra mulher??? Epá, desculpem lá, mas já não há pachorra para tanta estupidez, ignorância e burrice. Por estas e por outras é que não andamos para a frente e, pelos vistos nunca iremos andar. Se as pessoas vivessem as suas vidas e não as dos outros, de certeza que estávamos todos muito melhor. E neste assunto, por aqui me fico, porque não me apetece dar demasiada importância a ignorância e preconceitos.

Transmisoginia. Ódio dirigido exclusivamente a mulheres trans. Já tinha escrito sobre este tema há uns tempos atrás, mas volta a estar na ordem do dia. Nos EUA assiste-se a vários casos de transmisoginia, que vão desde as mulheres trans continuarem a ser tratadas como lixo, em que em talkshows nós somos "trannies" (calão americano para qualquer coisa como "traveca"), o que é altamente ofensivo para qualquer uma de nós, a continuarmos a ter homens a desempenhar papeis de mulheres trans, seja no cinema, seja na televisão.
 
 

Ou seja, há imensas actrizes trans nos EUA. Podia fazer aqui uma lista. Mas quando há papeis de mulheres trans, são interpretados por homens. Para mim, há aqui qualquer coisa que não joga bem. Ou seja (novamente), se o papel for o estereótipo da mulher trans: prostituta, ninfomaníaca, cheia de maquilhagem, silicone e saltos altos, lá chamam uma actriz trans (desde que o papel seja pequeno também). Se for um papel diferente desse estereótipo põem um actor. Apenas uma grande questão: por mais que esse actor seja bom, por mais bem preparado que esteja, ele sente o que uma mulher trans sente? Ele sabe o que é ser-se trans? Ele vai mudar, por instantes, de identidade de género para saber o que nós sentimos, para saber como somos?

Por outro lado, há algumas mulheres trans que estão a dar cartas e que são um orgulho para todas nós, como Laverne Cox, que interpreta uma mulher trans na série "Orange is the new black" e Carmen Carrera, que além de actriz é modelo e tem excelentes hipóteses de ser o próximo "anjo" da conhecida marca de lingerie Victoria's Secret. Aliás, são estas duas mulheres trans que têm dado que falar nos EUA, desde que foram entrevistadas num programa de televisão onde a entrevistadora estava mais interessada em saber que genitais elas tinham entre as pernas do que com a importantíssima relevância e destaque que estas duas mulheres estão a ter em todo o mundo.

Por cá, nada de novo. Neste país à beira-mar plantado nós, mulheres trans, continuamos todas a ser vistas como aberrações, freaks e algo de que se tem que fugir, pois (parece-me) que isto se pega. As pessoas falam, falam muito e falam demais. Ninguém sabe a dificuldade que é para uma mulher trans arranjar um emprego ou um trabalho. Ninguém sabe como nós somos tratadas numa urgência de um hospital, ou após uma cirurgia. Ninguém sabe o que nós sentimos quando vamos tomar um café e, de repente, tudo fica em silêncio e se acende um holofote em cima da nossa cabeça. Só nós sabemos isso. Mas não custa nada tentar entender, tentar compreender. Tentar ser humano connosco, como nós tentamos ser com os outros.

Mas não. Cada vez há mais intolerância. Nós nem direito a amar temos. Por mim falo. Não tenho o direito a amar. Teria se "fosse mulher", como já me disseram várias vezes. Como sou "trans" sou merda, sou uma boneca insuflável, não tenho nem nunca terei os mesmos direitos que "as mulheres". Ou seja (pela última vez), eu não sou uma mulher. Sou algo que está num limbo. Tipo pareces mas não és, ou és mas não pareces, ou não és carne nem peixe, ou, ou, ou... Resumindo, e fazendo desta triste estória uma estória curta, eu, como mulher trans, não o sou, não tenho sequer o direito de ser, dizem eles.

Pois, mas era só o que faltava. Não passei por tudo o que passei na vida, e passo, para chegar agora e desistir. Isso nunca. Porque o que eu sou, sou. Não é ninguém que me vai julgar, rebaixar e muito menos dizer-me o que sou. Sou eu que me defino. Sou eu que sou. Não és tu, nem tu, nem o outro. Já fui muito tolerante. Agora não sou. Já respeitei quem nunca me respeitou. Agora não. Já tentei agradar, apenas na ilusão de que iria ser aceite. Agora não. Podem retirar-me todos os direitos que acham que eu tenho e não devia ter. Mas só por cima do meu cadáver. Porque nunca ninguém vai saber o que eu sou. Só eu.
 
---> Fotografia de Cristina Piçarra/2013