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Sou uma mulher transexual de Lisboa, Portugal, onde nasci e cresci. Neste espaço poderá encontrar pensamentos, reflexões e comentários inerentes à minha vida como mulher trans. Seja benvind@ ao meu cantinho.

terça-feira, julho 12, 2016

Cultura de afectos - Parte II

Apesar deste post ter o título de parte dois da cultura de afectos, acaba por ser mais uma reflexão e um recordar de situações que mostram o contrário, ou seja, os desafectos da minha vida até agora.



Sim, porque a vida é mais feita de desafecto do que de afecto. Não querendo bater no ceguinho, as pessoas preferem maltratar-se e andar constantemente em conflicto do que respeitar-se e dar espaço a que sentimentos positivos surjam e as façam viver melhor, em paz, serenidade e luz.

No post anterior falei de coisas que nunca ou raramente falo - relações (ou falta delas) familiares. Ao longo dos anos e em muitas das entrevistas que dei, a questão familiar da minha aceitação ou não como mulher transexual era colocada. E eu sempre fiz questão de não querer falar publicamente sobre isso.

Mas penso que cometi um erro. Acho que se as minhas acções foram sempre colocadas em questão e desprezadas por eles, porque os protegia eu? Eles nunca me protegeram. Eles nunca se preocuparam minimamente se eu estava bem ou mal. A preocupação era com os outros, no sentido mais subjectivo que isto tem. Mas quem são os outros e o que contribui a opinião de pessoas que nem conheço para a minha vida e para a minha felicidade? Absolutamente nada, mas como todos sabemos, a sociedade está estruturada desta forma. 

O que interessa não é o que tu és é o que aparentas ser. Eu podia ser uma mulher transexual a vida toda, desde que andasse travestida de homem e passasse por tal. Era esta a linha de pensamento deles, sublinhando que, acima de tudo, não deveria sequer falar ou expressar-me sobre isso.

Para a minha mãe, eu devia ter falado com ela quando era adolescente para que ela falasse com o meu pai e assim me puderem "ajudar". A suposta "ajuda" era internar-me para eu ser obrigada a submeter-me a um "tratamento de masculinização" para "resolver o problema". Claro que este "tratamento" deveria incluir choques eléctricos, como esteve muito em voga até quase ao final do século passado.

O meu pai estava mais preocupado com o meu "desenvolvimento físico". Durante muito tempo, já na minha idade adulta, nunca compreendi muito bem porque me começaram a surgir ataques de ansiedade e pânico em certo tipo de situações, sendo que uma delas era quando tinha que tomar um banho. Entrar na casa de banho para me lavar levava-me a tremer de cima a baixo e a entrar quase em colapso. Mais tarde as lembranças terríveis foram surgindo e revivi os momentos em que, com a conivência da minha mãe, ele entrava na casa de banho sem sequer me perguntar nada, para "inspeccionar e ver como se estavam a desenvolver os meus genitais". É a mais pura verdade. Ele aproveitava que eu estava no banho, logo nua, entrava e tocava-me para ver se "eu era normal".

Perguntei muito mais tarde à minha mãe porque ela permitiu que ele tivesse feito uma coisa daquelas ao longo de anos. Ela respondeu-me laconicamente que "não sabia de nada", o que era mentira, e mudava de assunto. Agora que ele morreu já há uns anos isto poderia não ter já qualquer importância. Mas teve. Marcou toda a minha adolescência e idade adulta na questão da minha vivência da sexualidade. Não gosto e nem permito que me toquem lá em baixo. Ajo como se aquilo nem existisse e não tenho vida sexual seja de que tipo for. Estas foram apenas algumas consequências que ficaram do que ele me fez.

Eu tinha "muito mimo" diziam eles desde que eu era pequena. É curioso falar em muito mimo quando nem atenção se dá. Muito mimo é propriamente o quê? O mimar uma criança, um adolescente ou um adulto faz-lhe mal? A mim sempre me disseram que o mimo estraga as crianças. Talvez por isso não me tenham dado nenhum. Assim evitaram que eu me estragasse, pela óptica deles. Pela minha óptica, não há nada melhor que o mimo, não há nada melhor do que mimar e ser mimado, acarinhar e ser acarinhado. Mas eu não sou eles. Felizmente.

Estas reflexões e confissões ficam aqui e só aqui. Não faço tenções de voltar a falar sobre elas. Fi-lo porque acho muito importante que as pessoas que me lêem tenham a noção de que o nosso passado pode e marca sempre o nosso futuro. Se guardo ressentimentos em relação ao que me fizeram no passado longínquo e recente? Sim, guardo muitos, todos da suposta "família" directa. Se isso afecta a minha vida? Não. Já afectou e muito, mas hoje em dia consigo conviver com isso e seguir em frente sem fantasmas e más energias de gente que não interessa a ninguém. Afinal, tal como eu, há tanta gente criada em famílias disfuncionais e estamos todos e todas aqui. 

Amanhã, logo, daqui a uma semana, um mês, anos, haverá um dia em que partirei e já não estarei fisicamente aqui. Mas ficam as minhas confissões, reflexões, pensamentos e emoções para que quem aqui vem e me leu consiga entender-me e, quem sabe, entender a vida um pouco melhor.

Obrigada por tudo. Até breve.