Lara's dreaming

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Sou uma mulher transexual de Lisboa, Portugal, onde nasci e cresci. Neste espaço poderá encontrar pensamentos, reflexões e comentários inerentes à minha vida como mulher trans. Seja benvind@ ao meu cantinho.

sexta-feira, julho 26, 2013

A minha autodestruição ou como o mundo não é lindo e as pessoas não são boazinhas

Há muito tempo que andava para escrever sobre isto. Com o agravar da depressão, começou a custar-me mais escrever, sentia-me e sinto-me exaurida quando termino de escrever.
Tem a ver com a catarse de lembranças, recordações íntimas e longínquas que me surgem quando escrevo.

Podia escrever sobre muita coisa. Lá isso podia, mas escrever sobre mim, sobre o que penso que sou e que sinto, acho que é a única coisa que sei escrever minimamente bem.

A minha autodestruição consciente começou já tarde. Começou aos 20 e tal anos, quando tive consciência plena do que eu era, de quem eu era. Senti-me despida, vulnerável como nunca nesse momento e sinceramente, muito perdida. Não sabia para que lado me virar, o que fazer, com quem falar, o que dizer.

Era uma coisa só minha. Sentia-a desde criança, desde que me lembro, mas tinha conseguido disfarça-la inconscientemente durante anos, para que socialmente fosse vivendo mais ou menos. Digo mais ou menos, porque nunca fui bem aceite em lado nenhum, nem por ninguém, incluindo obviamente a família próxima.

Fui discriminada na escola primária porque não me comportava como era suposto. Fui discriminada no liceu porque era supostamente homossexual (sem nunca ter tido esse tipo de conversas fosse com quem fosse) e chegou ao ponto de um suposto amigo desse período (14, 15 anos) ter deixado de me falar e de sequer olhar para mim, senão comia porrada dos machões da turma dele porque se dava com o paneleiro.

Isso passou, eu fui comendo e calando e chegou a altura do boom. Compreendi e verbalizei para mim o que eu sentia, o que eu era. E aí foi ver o mundo ruir aos meus pés. Tentei encontrar uma suposta solução para o meu problema (chamar problema a ser-se transexual é, no mínimo, ridículo, parece o discurso cada vez mais espalhado da doença). Falei com as pessoas mais próximas de mim, na altura, e qual é o meu espanto quando vejo que, em vez de apoio recebi rejeição e todos se afastaram, sendo que a maioria deles deixou inclusive de me falar.

Em vez de compreensão encontrei rejeição e gozo. Em vez de carinho e apoio encontrei nojo e distância. Algo que nunca se faz a ninguém, nem a quem tem uma doença contagiosa. Caminhei sozinha durante algum tempo. Tentei informar-me, tentei saber quem me poderia ajudar a saber o que fazer. Mas aqui entrava o principal: o que eu na realidade queria. E isso eu sabia, bem lá no fundo.

Mas com o tempo a passar, apercebi-me que não ia nunca conseguir atingir os meus objectivos. Uma mulher trans como eu não tem, em parte nenhuma, os mesmos direitos que uma mulher biológica.
Eu queria muito ter sido mãe e não podia biologicamente sê-lo. Eu queria ter tido um relacionamento emocional estável, mas nunca encontrei um homem disponível para isso. Eu queria ter casado e não podia. Acima de tudo, eu queria ser respeitada como qualquer outra mulher e, salvo raras excepções, nunca o fui nem o sou.

Tu podes ser linda, ter feito as cirurgias todas incluindo a de redesignação de sexo, teres os papeis legais todos como mulher. Mas nunca vais ser vista como tal. A conclusão desta parte é que o famoso estigma de que tanto tenho escrito neste blog nunca desaparece, seja aqui, seja na China. Vais ser sempre aquela que foi homem, o homem com mamas, "o" transexual. Não vais ser a Maria, a Joana, a Lara, mulheres, ponto. Isto independentemente das cirurgias que faças e de onde vivas.

E, quando me apercebi de tudo isto (e não demorou muito tempo, como podem imaginar), comecei a fechar-me em mim, a destruir-me. Não era isto que vivo que queria para mim. Não era este corpo que tenho que queria para mim. Não era ser (des)tratada como sou que queria para mim. Não era ser constantemente motivo de assédio transfóbico que eu ambicionava para mim.

Viver agora vale de quê, vale para quê? Para o bem-estar dos outros que estão à minha volta? E o meu suposto bem-estar? Esse, pelos vistos não interessa nada. Porque, no fundo, praticamente nada mudou desde que me comecei a autodestruir há 20 anos atrás. Não sou respeitada, nem como mulher, nem como nada. Se dou um testemunho (atenção, testemunho quer dizer experiências reais de vida), vêm logo umas bandalhas (sim, nesse aspecto elas são piores que eles) dizer que eu me estou a fazer de vítima e que tenho muita sorte. Nunca me disseram é no que eu tenho muita sorte. Em quê? Não ter sido assassinada ainda por algum transfóbico ou algum grupo de neonazis? Só se a minha grande sorte for essa. Quem sabe não chegue o dia, não é? Pelos vistos, e pelos números que vejo todos os dias, está muito na moda matar cruelmente mulheres trans.

Deixei de ligar à minha aparência. Deixei de comprar roupa que gostava de ter. Deixei de fingir que estou bem quando não estou nada bem. Sorrir não quer dizer que eu esteja bem, alegre ou feliz. O meu sorriso surge nos raros momentos em que sinto um sopro de bem-estar momentâneo. Agora cuido o mínimo indispensável de mim. Apenas o necessário. Foi uma vida desperdiçada. Agora faço apenas o que sinto que tenho que fazer, como ajudar os meus pais, e os poucos amigos que tenho da melhor forma que posso.

Poderia aparecer mais nos locais onde estão as pessoas que conheço, onde poderia conviver, conversar, sorrir. Mas não quero. Só saio quando é imprescindível e mesmo assim, contra a minha vontade.

O meu cabelo enfraqueceu muito. As unhas também. Emagreci. E só não ponho fotos em lado nenhum de boca aberta com um "big smile", porque ter todos os dentes de cima partidos não fazem um belo riso, diria eu. Também afasta as pessoas. Mas isso não me chateia. Se cheguei onde cheguei foi por desilusão comigo própria, e a culpa de tudo isto é só minha, de mais ninguém.

E dou por encerrado um post que me custou a escrever e me fez recordar muita merda que não me apetecia nada.

Agora já podem escrever uns comentários ofensivos, ou então daquele tipo "a gaja está cheia de sorte e ainda se faz de vítima!". Sinceramente, por mim é tinto. Escrevo porque sinto necessidade de desabafar, porque acho que algures no mundo alguém também se pode sentir assim e entender-me. Mas não procuro aprovação daqueles e daquelas que acham que isto é um mundo muito lindo, que és senhor do teu destino, e que nascemos todos muito bonzinhos.

O mundo é terrível, uma selva no pior sentido da palavra, e as pessoas, na sua esmagadora maioria, não valem um peido, desculpem a expressão. Não quis nada disto, mas nasci e tive que prosseguir. Fui obrigada a isso. As minhas tentativas de suicídio foram sempre falhadas. Agora resta-me estar aqui e esperar a morte. Sinceramente, espero que não demore muito.

quarta-feira, julho 10, 2013

Os homens são de Marte, as mulheres são de Vénus

Numa vida em que eu tive que refazer e aprender tanta coisa, é triste chegar aos 42 anos e chegar à conclusão que, na realidade, os homens são de Marte e as mulheres de Vénus.

Fartei-me de ter conversas daquelas em que os homens diziam (e dizem) que não entendem as mulheres, que não percebem o que elas querem, que não lhes apetece falar dos assuntos que elas falam e todo aquele bla, bla, bla que conhecemos.

Sim, porque antes de me assumir como mulher publicamente, tive que andar refundida durante metade da minha vida numas vestes e num papel de género que não me correspondia e tinha que levar com as verborreias mentais de muito suposto macho que anda por aí.


E, como repararam comecei com um cliché do mais cliché que há. Mas, na realidade, ao vivermos apercebemo-nos que as pessoas reproduzem os clichés, aprendem e apreendem os clichés e reproduzem-nos, como se fosse algo que lhes estivesse no ADN.

As mulheres são assim, os homens são assado, as mulheres fazem isto, os homens não. E mesmo sendo activista, feminista, transexual e mulher, acabo por me aperceber que eu própria reproduzo muitos destes clichés do papel de género feminino que me foram incutidos. E sinto-me estúpida e ridícula quando me apercebo.

"Bem, tenho que ser feminina, porque sou mulher". O que é que isto quer dizer? O que é ser feminina? O que eu considero ser feminino provavelmente não é o mesmo que outra ou outro considere. Eu tenho padrões (subjectivos, confesso) do que é ser feminino e masculino, mas apercebo-me que a maioria das pessoas tem conceitos estáticos, são pragmáticos em relação à feminilidade e masculinidade.

E então se eu for uma mulher trans? Aí é que a porca torce o rabo. Ao longo dos anos fui vendo que as mulheres trans exacerbam, ou têm tendência para isso, os traços femininos (ou supostamente femininos) em todas as suas vertentes. É plástica para cá é silicone para lá, é roupas exageradamente reduzidas, como se para sermos vistas como mulheres temos que usar roupas que as próprias mulheres biológicas raramente usam e por aí fora. Se as estou a julgar? Estou e não estou. Não as critico pejorativamente. Estamos em sociedades (não me refiro só à portuguesa) em que nos são exigidos papéis de género como definições daquilo que somos.

E devido a mais este cliché, aquelas mulheres trans que não encaixam neste perfil são postas de parte. E eu não encaixo no cliché básico da mulher trans. E sou discriminada por isso. Sou presa por ter cão e presa por não ter. Tanto sou tratada como homem com mamas, como sou tratada como "meio-andrógina", seja lá o que essas coisas são. Não faço parte do cliché, nem quero fazer. Sou como sou, tento conviver o melhor possível com o meu corpo, mas recuso-me a transformar-me em algo que eu olhe ao espelho e não me identifique.

Mas as mulheres (trans e bio) não entendem isso. Muito menos os homens, sempre tão ligados aos lugares-comuns dos papéis sociais e de género. Então para eles, ser-se trans é quase uma mistura entre uma Barbie humana e uma Angelina Jolie. As mulheres trans têm que ser lindas, deslumbrantes, siliconadas, que usem todas tops e mini-saias e saltos-altos agulha. Ridículo no mínimo.

Se não te encaixas aí, minha amiga, estás mal. Ou não te preocupas com isso e tens esperança de encontrar algum "iluminado" que se interesse por ti por quem és e não pelo que aparentas ser, ou investes milhares de euros na tua imagem para depois conseguires umas quecas secas com todos os homens que encontrares e te apetecer.

Eu sei, eu sei, homens e mulheres supostamente são diferentes hormonalmente e por aí fora. Mas se não se pusessem as pessoas em caixinhas herméticas, talvez vivêssemos todos muito melhor e conseguíssemos ser realmente felizes, em vez de andarmos todos aqui a fingir que o somos.