Lara's dreaming

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Sou uma mulher transexual de Lisboa, Portugal, onde nasci e cresci. Neste espaço poderá encontrar pensamentos, reflexões e comentários inerentes à minha vida como mulher trans. Seja benvind@ ao meu cantinho.

sábado, junho 28, 2014

A pílula (nunca foi) dourada

Chegamos a uma fase da nossa vida em que nada mais interessa do que dar valor a quem realmente o merece e a quem demonstrou e/ou demonstra que nos aceita, que gosta de nós e nos respeita. E, conforme os anos vão passando, as décadas da nossa vida vão passando, apercebemo-nos que a paciência é necessária em muita coisa, mas por outro lado, já nos falta para quase tudo.

No outro dia teclava com um "amigo" (está entre aspas, pois até acho que ele gosta de mim e me considera amiga, mas tem preconceitos demais para eu o considerar amigo a sério) quando ele me diz que eu, apesar da idade, "ainda estava um naco" e que "os gajos não se aproximavam porque os preconceitos são muito grandes e eles não têm coragem". Ou seja, algo que para ele era dado como adquirido, era algo que eu sei desde sempre, seja eu "um naco" ou não.

Obviamente que ele também falava por si. Afinal, eu e ele andámos anos até nos envolvermos e tudo ficou por aí, pois ele depois desapareceu durante mais de um ano. Resumindo, eu "sou um naco" (o que está implicitamente ligado à minha sexualidade) e é apenas para isso que sirvo, tal como o estereótipo típico da mulher trans. E "descobri" que eles até para darem uma queca com "o naco" têm receio de se aproximar porque alguém pode ver, saber, etc., porque os "preconceitos são muito grandes" e eles não os conseguem ultrapassar.

Portanto, eu, mulher transexual de 43 anos, mesmo que quisesse ter um relacionamento com um homem nunca iria conseguir, pois eles nem para uma queca têm coragem, seguindo o raciocínio do meu "amigo". E na realidade ele até tem razão. Por diversos motivos, as mulheres trans estão intimamente ligadas a "taradas sexuais", "objectos sexuais" e prostituição, nunca como a vizinha do lado, a mulher que vai ao teu lado no metro, a executiva, etc. Por mais que se lute para mudar as mentalidades e se mostrar que nós, mulheres trans, somos mulheres, ponto, a visão social que existe de nós é exactamente a que ele me deu como feedback.

E eu, sinceramente, já estou muito cansada de andar a batalhar contra este tipo de imposições sociais, pelos vistos sem algum sucesso. A discriminação é diária, o assédio é mais que muito e de uma agressividade que não a mesma utilizada com as outras mulheres, e no meio de todas estas imposições é praticamente impossível ter uma "vida normal" como qualquer outra pessoa. Numa frase: és uma mulher trans não tens direito a ser quem és, ou refraseando, és uma mulher trans logo não tenhas essas ideias que podes ter um companheiro e ter uma vida comum (o caso das mulheres trans lésbicas é diferente).

É triste, pelo menos para mim, mas a vida de alguém que não se encaixa nem se consegue encaixar de forma alguma numa sociedade como esta, em que não somos aceites nunca, apenas toleradas e só em certas ocasiões, chegar a esta idade e deparar-me com a "verdade" que me perseguiu toda a vida. Relacionamentos falhados, noites que poderiam ser dias e nunca foram, paixões nunca correspondidas apenas porque sou quem sou, humilhação, agressão verbal e física, assédio ordinário e vulgar, perda total de autoestima e o fechar-me dentro da minha concha, reduzindo-me à minha insignificância.
 
 

Este podia, e se calhar devia, ser um post alegre, feliz, mas não é. Andei demasiados anos a tapar o sol com a peneira para agora dourar a pílula. Ela não é, nem nunca foi dourada. Cabe a cada uma de nós tomar consciência disso cedo, e aprender a viver com este handicap, ou, como eu fiz, passar uma vida inteira e muito complicada, para chegar à conclusão que as coisas são como são, e mesmo que eu me descabele toda, não as vou mudar em relação a mim.

Mas sinto necessidade de escrever e reflectir sobre elas aqui, para as objectivar, e com alguma sorte, alertar e ajudar alguém que me leia. É para isso que serve o meu blog, quer gostem, quer não.

quarta-feira, junho 04, 2014

Universo T - uma reflexão

A minoria dentro das minorias. É assim que podemos, de forma simplificada, definir as pessoas trans. Somos mulheres e homens em que o género – seja a identidade ou expressão – se encontram sempre fora da suposta “norma”.

O binarismo de género, ou seja a dicotomia homem-mulher não se aplica a grande parte das pessoas trans. Há pessoas trans que não se sentem nem homens nem mulheres, há pessoas trans que se identificam como mulheres mas nada ou pouco alteram o seu corpo e vice-versa, há pessoas trans que alteram todo o seu corpo para caberem na sua sentida identidade de género masculina ou feminina.

Tanto se tem falado, escrito, discutido sobre o universo T, e tão pouco se sabe ainda, ou se quer saber. Um dos últimos estudos feitos sobre pessoas trans detectou pelo menos 500 tipos diferentes de identidades de género. Como falar então numa simples dicotomia mulher-homem?

Há quem se sinta mulher. Há quem se sinta homem. Há quem não se sinta nada dentro destes dois géneros. O género é um longo caminho de tons de cinza entre o preto e o branco. E cada um de nós se encaixa algures dentro desse imenso espectro, o que raramente é visto com bons olhos.

A comunidade LGB existe por si só e discrimina muitas vezes a comunidade T. Ou seja, o T está lá mas é como se não estivesse. Por isso também se discute cada vez mais se o T lá deveria estar, ou se deveria ser uma categoria à parte. Afinal, identidades trans não são orientações sexuais. Uma pessoa trans pode ter qualquer orientação sexual. Uma mulher trans pode ser hetero, lésbica ou bi. O mesmo se passa com um homem trans.

Acima de tudo há que ter a noção plena de que muitas pessoas que se identificam como transexuais não sentem necessidade de fazer a cirurgia de correcção de sexo. Chega de genitalocentrismo. Esta cirurgia pode ser uma consequência de se ser transexual, nunca uma causa. Chega de nos considerarem doentes mentais.

Nós não somos doentes. Somos diferentes. Como cada pessoa é da outra.

Chega de transfobia dentro da comunidade LGBT.

Só no dia em que nos aceitemos uns aos outros como somos realmente alguma coisa mudará. O respeito verdadeiro e honesto verá a luz do dia, e então poderemos falar de uma verdadeira Comunidade. Até lá, a intolerância e a falta de respeito imperarão, como agora se passa.

A transfobia mata. Cada vez mais. Qual será o nosso futuro então?


Lara Crespo, 3 de Junho de 2014



Este meu depoimento foi escrito para a apresentação que Ana Rita Brito, Coordenadora do Projecto AGUARELA - Plano de Iniciativas para o Combate à Discriminação pela Orientação Sexual e Identidade de Género, da ONG Saúde em Português, fez na tertúlia "Transformar", realizada em Coimbra.