Lara's dreaming

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Sou uma mulher transexual de Lisboa, Portugal, onde nasci e cresci. Neste espaço poderá encontrar pensamentos, reflexões e comentários inerentes à minha vida como mulher trans. Seja benvind@ ao meu cantinho.

sexta-feira, fevereiro 28, 2014

Os homens conseguem amar? Uma reflexão.

É uma reflexão interessante e que me surgiu depois de ler alguns textos e crónicas sobre a capacidade ou falta dela de os homens amarem. Isto dá pano para mangas, como qualquer assunto que tenha a ver com sentimentos e emoções. Principalmente porque as mulheres são educadas e induzidas a mostrar o que sentem, e os homens não.

E aqui entramos nas diferenças entre géneros e na própria expressão de género. O antigo e eteno "os rapazes não choram" continua a fazer, infelizmente, parte da educação de uma criança. Poucos são os progenitores que educam uma criança a ser ela mesma. Quero com isto dizer, deixá-la expressar-se livremente em todos os aspectos. Desde o intelectual racional ao emocional.

Naquilo que eu conheço, o machismo pós-latino continua a ser um "must" na educação e criação das crianças, seja qual for o género delas. Os lugares-comuns são tantos, que estava aqui horas a fazer uma lista. "Os meninos de azul e as meninas de rosa". Mas o que é isto? Isto é a mais pura representação desta sociedade machista em que até as cores têm género. Ridículo, no mínimo.

A capacidade amar dos homens é reflectida por este tipo de educação. Há factores como a testosterona exageradamente alta que afecta o comportamento dos homens (e também das mulheres), e não tenho dúvidas de que os nossos cérebros são diferentes, mas a expressão de género que cada rapaz assume reflecte tudo aquilo que aprendeu e apreendeu e que vai repetir, mesmo que com outras nuances.

Um homem com uma expressão de género extremamente masculina pode demonstrar uma sensibilidade extraordinária. Como um homem com uma expressão de género afeminada pode ser extremamente bruto, agressivo e de forma aparente, nada sensível nem emotivo. Dentro do espectro dos vários tipos de homens, encontramos tudo, como também no caso de nós, mulheres.
 
 

Mas o homem ama de uma forma diferente. O homem é naturalmente mais físico que a mulher. É mais sexual. Não quero com isto transmitir a ideia de que nós, mulheres, somos frigidas e que também não somos sexuais. Mas uma mulher antiga, como eu, necessita de um tempo que só o conhecimento e a empatia com o outro traduzem, que muitas mulheres, e os homens não necessitam.

Nada contra uma relação começar na cama. Tantas e tantas começam assim. Mas comigo é difícil que tal aconteça. Principalmente, e lá vou eu outra vez, porque já estou escaldada com o estereótipo da mulher trans ninfomaníaca, prostituta, oferecida, dada, tudo com conotações mais que negativas, sendo que somos vistas e transformadas em bonecas insufláveis. E, se eles nos vêem assim, temos pena, eu não compactuo nem nunca vou compactuar com isso.

Claro que os homens amam. Cada um ama à sua maneira. Mais correcta ou mais errada. Mas para alterar este tipo de mentalidades teríamos que começar de novo e educar os miúdos a serem eles, livres, sem restrições negativas, ensiná-los a lidar com os seus sentimentos e não agir por defeito. Não nos podemos esquecer é que no nosso país continuam e continuarão a morrer mulheres às mãos dos homens. Isto acontece por causa de muita coisa que referi, e porque a mulher continua a ser considerada um suposto pertence do homem. "Não és minha, não és de ninguém". E o resto da triste estória já nós sabemos. Vemo-la quase todos os dias nos jornais, nos noticiários, sabemos de casos que nos contam.

Ninguém pertence a ninguém. Duas pessoas amam-se e completam-se sem necessitarem deste tipo de possessão, deste tipo de ciúme, de doença, que uma sociedade, essa sim doente, nos transmite. Uma sociedade que diz que nós, mulheres trans somos aberrações, freaks e coisas que tais. Uma sociedade que não admite que uma criança tenha duas mães ou dois pais, como se isso fosse anti-natura. Anti-natura é uma sociedade que cria monstros preconceituosos e que discriminam tudo aquilo que, supostamente, é diferente.

Nada é igual. Logo, tudo é diferente. Então nada disto faz sentido. Os homens amam, sim. Mas amarão com muito mais amor e entrega se lhes for retirada esta carga tão pesada do macho-latino. Quando deixar de se misturar uma velha e arcaica moral judaico-cristã na vida e nos sentimentos e emoções de uma criança. Ainda sonho com uma sociedade em que todas as diferenças sejam elas quais forem sejam respeitadas por todos. Em que nós, mulheres, possamos amar sem medo, e que os homens possam amar sem ter que se armar. E tenho dito.

domingo, fevereiro 23, 2014

As regras da atracção ou a falta delas

As regras da atracção. Sempre achei uma certa piada a esta frase, como se o que sentimos por alguém pudesse ter regras, pudesse ser quantificado de alguma forma, ou regido pelas estrelas. No que ao que sentimos diz respeito não há regras, não há imposições, não há predefinições. Sentir é sentir. Podemos é reagir numa certa linha ao que sentimos. Existe aí um instinto que nos leve a aceitar ou rejeitar quase mecanicamente o que sentimos.

Escrevo sempre (ou quase) sobre o que sinto ou como sinto o mundo, as pessoas, as situações que me rodeiam. Escrevo sobre a minha experiência como uma mulher que teve o azar de nascer trans. Sim, considero-o um azar, não uma sorte. Sorte, para mim, era ter nascido cisgénero. Isto não implica que eu não me sinta minimamente bem na minha pele e que tenha vergonha de ser quem e como sou. Nada disso. Apenas não faço, nem nunca fiz, a apologia do "é tão bom ter-se nascido numa minoria dentro das minorias e ser discriminada por toda a gente".

Temos pena, mas eu não sou assim. Eu não penso assim, nem vejo o mundo assim. Sinto-me abençoada por ter nascido num mundo tão belo, mas onde a esmagadora maioria das pessoas não presta. Mas a quantidade das que prestam fazem-me sentir uma pérola perdida num oceano de mentes mentecaptas e retrógadas. E isto tudo é emoção, é sentir. E é sobre o sentir que este post fala.

Todas as mulheres sabem o que é sentir-se atraídas ou sentir que são o alvo da atracção de alguém. Sejamos mulheres trans ou cisgénero, a estória é a mesma. Todas nós reagimos é de forma diferente. Não posso falar ou escrever sobre as outras, sobre a experiência delas. Apenas me posso cingir à minha experiência sobre as famosas regras da atracção. Esta atracção que é um sentir tão especial, tão leve, tão sub-reptício.

É algo que nos entra pela alma quase sem darmos por ele. Um olhar, um gesto, uma palavra, um toque de raspão da mão dele na minha. Qualquer coisa destas e muitas mais podem estar na base de algo muito forte, que nos pode levar, ou não a algum lado. Todas temos esquemas mentais emocionais pré-definidos para lidar com isto, quer tenhamos consciência ou não. Eu, pelo menos tenho. E não tomei conhecimento disso há muito tempo atrás.
 
 

Não gosto de jogos de sedução, confesso. E, quando acontecem, espalho-me ao comprido. Existem jogos de sedução quando ambas as pessoas se sentem atraídas, obviamente. Senão, eu nem percebo sequer que ele quer alguma coisa, ou vice-versa. Sou muito pragmática, eu sei. Sim, sou-o até na minha atitude perante a sedução, fase dois da atracção. Lembro-me de ainda ser bastante jovem e sair à noite e notar que um rapaz me olhava de uma forma "esquisita", achava eu. Quando percebia que aquela forma "esquisita" de olhar não era mais do que atracção, corava até às pontas dos cabelos, desviava o olhar automaticamente, só queria fugir dali.

Mas fugir porquê, perguntei-me anos mais tarde. Porque eu não me sentia uma mulher como as outras. Porque eu me sentia diminuída em relação às outras mulheres, fossem trans ou cisgénero. Sempre achei, no fundo, que eu não estava à altura de um grande amor, que teria que começar, logicamente, por uma atracção. Como não me sentia digna de tal, fugia. Mas sem ter a real noção do que se passava comigo.

Obviamente que estas baralhações mentais e emocionais se devem muito ao facto de uma mulher ou homem trans serem obrigados a viver praticamente duas vidas numa só. Eu fui obrigada a comportar-me como "homem", algo que nunca fui, e que rejeito liminarmente e sempre rejeitei. E com esta "obrigação" social veio a revolta. Da minha aparente calma saía uma revolta monstruosa contra tudo o que me estavam a tentar impingir. Valores sociais que nunca me disseram nada, comportamentos que não correspondiam ao que eu era, formas de estar e até de sentir que não eram meus. Nunca foram.

Quando dei o grito de revolta e parti a loiça toda, tudo isto se esboroou como um castelo de areia. Virei uma terrível página da minha vida, uma página de lavagem cerebral, e comecei do zero, a aprender a ser eu. E isto reflectiu-se na minha relação com os outros. Deixei de aparentar para ser. Mas era (e ainda sou) extraordinariamente naive em muita coisa ao que os sentimentos e emoções dizem respeito. Aprendi que não há regras. Eu sou única, como tu também. E eu reajo como eu, tu reages como tu. O problema são as cicatrizes que ficaram.

E além destas cicatrizes emocionais ficou muita culpa. Muita mea-culpa por ser quem sou. A santa ignorância e estupidez natural que paira socialmente por aí diz que nós somos assim por "opção", ou então que é uma "escolha". Se as pessoas tivessem um mínimo de tino na cabeça veriam automaticamente que nada disto faz algum sentido. Mas em frente, pois não vale a pena bater mais nos ceguinhos, já deu para ver que muito ou nada muda ou mudará. E que mais tarde ou mais cedo, ainda acredito que as pessoas vão entender quem somos. Caramba, está-me a dar um ataque de optimismo!

Atracção. Ponto fulcral no início de uma relação amorosa, ou de um enamoramento, ou o início de nada, que é mais a minha onda. Ao contrário do que possam pensar, a minha líbido é igual à das outras mulheres. Sim, não é por ser uma mulher trans que sou ninfomaníaca. Podia ser. Mas não sou. Também não sou aquela mulher que seja muito física. Pois, realmente não sou. Ainda por cima, não sou mulher de ter o mínimo de envolvimento sem conhecer a pessoa, e ter uma atracção por essa pessoa. No fundo, o que eu sou mesmo é uma gaja à antiga, tirando a parte do ir virgem para o casamento.

Fora de brincadeiras, e como vêem, não correspondo em nada ao estereótipo que existe da mulher trans. Sinto como as outras, sou como as outras. Nada, no meu ser, é assim tão diferente de uma mulher cisgénero. Nem a atracção e as suas regras ou falta delas. Uma das minhas, pelos vistos, é "fugir" ou "afastar-me" quando me apercebo do que se passa. Quer isto dizer que quando um homem se interessa por mim, eu tendencialmente fujo a sete pés. Não, não deixo o sapatinho de cristal. Em geral deixo é uma amargura no ar e tristeza no meu olhar.

Porque fujo? Não sei. Se calhar tenho medo de ser feliz, como já me disseram. E os medos fazem parte de cada momento da nossa vida. Cheguei onde cheguei porque os fui vencendo, um a um. Mas há medos que não só nunca se perdem, como crescem com as más experiências. E eu confesso que não consegui ainda ultrapassar muitos. Talvez por isso esteja viva. O que não implica que esteja mais feliz, contente ou alegre.

No fundo, eu continuo a ser aquela miúda que foge de um olhar. Que se esconde atrás de si mesma porque tem medo de sofrer. E objectivando isto, tenho mais consciência de quem sou. E que a droga que a atracção solta no meu sangue está viva, mas só eu a vejo. Não sejam como eu e mostrem-se. Vivam a atracção sem regras. Ou façam as vossas próprias regras. O que interessa é que sejam dignas e próprias de vocês. Regras da atracção? Bullshit!
 
Fotografia: Clara Azevedo/2003 - Todos os direitos reservados

sábado, fevereiro 15, 2014

O amor é terno e eterno

O amor surge inexoravelmente ligado à alma humana. Desde sempre que este sentimento é referido quando se trata do ser humano, seja nas canções, seja nos poemas, seja nas palavras que os enamorados sussurram ao ouvido um do outro. O amor faz parte da vida, dizem. A morte também. Afinal o que é o amor?

Eu não sei o que é o amor, no sentido amoroso do termo. Sei o que é amor por um amigo, amor por um pai ou uma mãe, mas não sei o que é sentir amor por outro que também o sente por mim. Aliás, acho que toda a estória do enamoramento e de tudo o que cerca o amor entre duas pessoas é altamente perturbador e causa ânsia, ciúme, desconfiança, torpor dos outros sentimentos, e afastamento das outras pessoas, coisas nada positivas, na minha modesta opinião.

Nas (muito) poucas alturas em que estive enamorada (não falo em amor, mas sim em enamoramento), sentia aquela faísca, havia aquela atracção, existia aquele torpor mental. Obviamente que esta é a minha experiência, e não quer dizer que seja a dos outros. Afinal, este blog serve única e exclusivamente para eu escrever sobre mim e sobre as minhas visões, reflexões e experiências neste mundo. É-me indiferente que pensem ou afirmem que este é um acto egoísta, de vitimização, ou de algo do género. É para isso que serve a caixa dos comentários.

Eu acho que muita gente confunde o enamoramento com amor. Enamoramento é um estado de pulsões, é uma paixão inflamada pelo início dos sentimentos. Amor é, supostamente, um sentimento mais definido, calmo, sereno, em que já não há a explosão e combustão que o enamoramento nos dá. O facto de ontem se ter comemorado o dia dos namorados ou de S. Valentim, levou-me a pensar e repensar um pouco o que tem significado o meu amor na vida dos outros, e o amor dos outros na minha.
 
 

Sei que já amei (no sentido amoroso do termo, agora). Não sei se alguma vez me amaram. Se alguém realmente me amou, nunca o disse ou expressou. Enamoramentos tive alguns. Aquela força arrebatadora que me levou a cair nos braços dele e ele a abraçar-me e beijar-me, sim, claro que já me aconteceu. Mas rapidamente acabou. Ou porque queimou depressa demais, ou porque é mesmo assim, ou porque o enamoramento é isto mesmo. E nunca ficou amor.

Não escrevo isto com amargura. Nunca estive realmente aberta aquilo que se chama amor, acho. Tenho medo de me entregar, tenho medo de ser magoada, sou humana, chiça! No final disto, fujo a sete pés de algo que pode (ou poderia) transformar-se em algo mais. Por isso fiquei-me (apenas) pelos enamoramentos, como se se tratasse de algo mais inócuo. Algo que não deixa marcas. Algo que começa e acaba assim, sem mais nem menos. Obviamente que estava enganada.

Ficaram marcas de algumas pessoas. Ficou mágoa, ficou tristeza, ficou humilhação. E se o enamoramento é isto, então que dizer do amor? Não sei, nem me cabe a mim dizer ou escrever nada. Não passei por essa experiência. Passei e passo pela experiência de amar uma mão-cheia de pessoas, a família que escolhi para mim. Mas esse é outro tipo de amor. É incondicional, como todos os amores, mas não tem a atracção sexual que implica o enamoramento e a paixão. Prefiro assim. Absolutamente inócuo.

Convém não esquecer que a minha "condição" de mulher transexual põe e sempre pôs travões numa vida amorosa saudável. Admiro as mulheres trans que conheço e que conseguiram (e conseguem) manter e ter uma vida amorosa estável, saudável e bonita. Talvez também tenham tido alguma sorte nas pessoas que escolheram para amar. Eu nisso, como em tantas outras coisas, confesso não ter jeito nenhum. Também sei que é difícil para qualquer mulher, que as mulheres cisgénero também se queixam do mesmo. Pois queixam. Pois claro que é difícil para qualquer mulher. Mas no nosso caso ainda é mais difícil.

Porquê? Porque, como mulheres trans, temos que lutar contra esse estigma do que é ser-se trans, temos que combater preconceitos e pré-conceitos e a discriminação diária. Logo, se alguém se aproxima, ou tenta, é natural que nós estejamos bem mais de pé atrás do que uma mulher cisgénero que não tem que passar por nada disto. Há aquelas que aproveitam o próprio estigma e estereótipo para irem tendo uma vida amorosa, apesar de me parecer que não se sentirão muito felizes ao fim do dia. E há aquelas que, como eu, se afastam de tudo o que possa ter a ver com a palavra "amor" e se tornam inócuas, assexuadas, e sim, muito provavelmente, bacocas.

O amor é algo que exige de nós muita coisa que não estamos dispostos a dar. Provavelmente a recompensa será um bem-maior, mas aquilo que ganhamos pode não superar o que perdemos. Não estou aqui a julgar ninguém, muito antes pelo contrário. Estou apenas a verbalizar o que me passa pelas células cinzentas. Há quem ame sempre a mesma pessoa ao longo da sua vida, e há quem ame cem. Também sabemos que o príncipe encantado e a princesa encantada não existem a não ser nos contos infantis. Então porque é que umas pessoas "têm sorte no amor" e outras não?

Provavelmente por tudo aquilo que já aqui escrevi, talvez porque há quem nasça para isso e outras não, talvez porque, como se diz, cada um de nós tem a sua alma-gêmea e ela estará algures no mundo. Confesso que esta ideia me agrada. De ter uma alma-gêmea. Posso, ou não, encontrá-la e ela a mim.

Mas acho que o que realmente importa é termos os nossos momentos de felicidade. E aí, para mim, o amor é secundário. Aliás, o amor amoroso não entra sequer. Talvez um dia vos escreva precisamente o contrário (o que duvido), mas por agora a minha vida é mesmo assim: não tenho esse tipo de amor, não me diz nada, e não o vejo a fazer parte da minha vida.

Para quem "oh, l'amour c'est l'amour" só tenho que me sentir feliz porque, em tantas partes do mundo e entre tanta gente ele existe. E existe porque o amor é eterno.
 
 
---> Fotografia de Clara Azevedo - Todos os direitos reservados.

sexta-feira, fevereiro 07, 2014

Rússia Nazi, Transmisoginia e os preconceitos revelados

No dia em que começam os Jogos Olímpicos de Inverno na Rússia, decidi fazer uma reflexão sobre a crescente "onda nazi e de extrema-direita" que pulula um pouco por todo o mundo. Desde os EUA, em que o debate sobre questões trans está ao rubro, até aos países de leste, onde incluo a Rússia, onde pessoas com uma orientação sexual que não a "normal" a pessoas com uma identidade de género diferente são perseguidas, humilhadas, torturadas e assassinadas, convém termos bem noção das consequências que tudo isto irá ter, e mais importante, que já está a ter.

Só não vê quem não quer. São diárias as imagens, os vídeos, as peças jornalísticas sobre violações consecutivas e reincidentes dos direitos humanos um pouco por todo o mundo. Curiosamente, ou não, o grupo de pessoas que são geralmente as vítimas são pessoas do extenso grupo LGBTI. No Brasil, as mulheres trans são perseguidas por todo o lado, e raro é o dia em que não há, pelo menos, notícia de uma mulher trans assassinada algures neste país, infelizmente nas estatísticas internacionais como aquele onde mais mulheres trans são assassinadas em todo o mundo.

A Rússia está na ordem do dia com as suas recentes leis contra a suposta "propaganda gay", e isto tem tomado tais proporções, que o presidente da câmara da cidade organizadora dos JOI, Sochi, afirmou à comunicação social que "não há, nem haverá, gays e lésbicas nos Jogos Olímpicos e na cidade". Bem, isto soa-me tão disparatado como perigoso. Eles vão controlar a orientação sexual e a identidade de género dos milhares de visitantes e de todos os atletas? Mesmo daqueles que já assumiram publicamente serem gays ou lésbicas? E o que fazem a estes atletas? Expulsam-nos? Prendem-nos? Matam-nos? Sinceramente não entendo como é que a entidade internacional que seleciona onde se vão realizar os JO e os JOI, depois de toda esta polémica manteve a Rússia como país anfitrião. Devia, isso sim, retirar a candidatura da Rússia e entregá-la a um país que respeite as pessoas e, acima de tudo, a dignidade, a liberdade, e a imensa diversidade do ser humano.

E da Rússia, onde deveria ter havido um boicote geral aos JOI, passo para os EUA. Depois da "barracada" da entrevista televisiva realizada à actriz Laverne Cox e à modelo e actriz Carmen Carrera, em que o enfoque da senhora que as entrevistou foi o que é que, afinal, as duas tinham entre as pernas, eis que mais uma vez, uma mulher trans é vítima de transmisoginia na televisão americana. Janet Mock, mulher trans, activista, advogada e escritora, acabou de ver sair para as livrarias o seu livro "Redefining Realness", onde, segundo sei, entremeia a sua história de vida com várias questões pertinentes para as pessoas trans, como a visibilidade, o coming out, a transição e o mais importante: a identidade de género.



Com uma mente aberta e sempre atenta à realidade das mulheres trans, em particular, Janet tem escrito crónicas deveras interessantes para jornais americanos e para diversos sites e blogs. Com este livro, ela pretende dar a volta à transmisoginia que cada vez mais existe por todo o lado, e dar um enfoque humano, positivo e lutador às questões ligadas à transexualidade. Pois bem, Janet deu uma entrevista a um programa da cadeia CNN, na qual o seu entrevistador é um senhor que vem de pasquins de histórias que têm tanto de cor-de-rosa como de escandaloso, logo não seria de esperar que a entrevista fosse correr muito bem.

E não correu. As perguntas caíram nos habituais preconceitos e pré-conceitos do que é ser-se uma mulher trans, Janet rebateu como podia, mas o senhor desde referir que ela "nasceu homem" - ao que ela retorquiu que "não nasceu homem, nasceu um bebé", como qualquer pessoa aliás, tentou saber vezes sem conta afinal que genitália a senhora tem entre as pernas. Vai daí, e como se vê, isto não correu nada bem e, apesar de Janet Mock se ter defendido bastante bem, caímos na humilhação constante por que nos fazem passar e de que ela foi vítima.

Após a entrevista, tudo o que é activista trans nos EUA se levantou contra a forma como Janet foi tratada e a própria Laverne Cox, que já tinha passado por algo semelhante, veio dar um basta neste disparate global da fixação nos genitais, do preconceito estigmatizado do "era homem e agora é mulher", cingindo-nos sempre a questões preconceituosas e secundárias e relevando constantemente para segundo plano o nosso valor como mulheres, sejamos actrizes, escritoras, modelos, trabalhadoras sexuais, mulheres a dias, etc., etc. Realmente, meus amigos, já chega de bater nas ceguinhas, porque acho que já estamos todas fartas da mesma conversa.

E toda esta carga de preconceito e discriminação, seja em relação à orientação sexual, seja em relação à identidade de género, passa-se um pouco por todo o mundo, e Portugal não é excepção. A onda imensa, até lhe chamaria o "tsunami de extrema-direita" que está a inundar o mundo também já cá chegou. É cada vez mais vulgar e comum uma mulher trans ser discriminada na rua, num café, numa repartição pública, num hospital, etc. Há cada vez mais ameaças à nossa integridade física, e as mulheres trans têm cada vez mais medo de sair de casa.

Há uma transmisoginia latente nesta sociedade em que tudo se está a pôr em causa agora. Convém, então, tomarmos como exemplo o que se passa lá fora, para estarmos atentas aos sinais, cada vez mais visíveis, do que se passa cá dentro e podermos actuar. Recuso-me a ter medo de sair à rua e tomar o meu café. Recuso-me a ser tratada como lixo. Recuso-me a que me reduzam à minha genitália. Recuso-me a viver em medo. Aliás, não o tenho. Sempre dei a cara e continuarei a dar. Menos, convém ressalvar, para programas de televisão ou entrevistas que tenham em vista explorar o que aparento ser, não o que sou.

Resta-me agradecer a pessoas como Janet Mock, Laverne Cox, Carmen Carrera, Monica Roberts e Isis King, entre muitas outras, que continuam a lutar pelos direitos universais das mulheres trans. Por cá, a gente faz o que pode. E continuará a fazer.
 
---> Janet Mock - Fotografia de Aaron Tredwell
 

domingo, fevereiro 02, 2014

O mundo, os direitos e eu: uma pequena reflexão

Neste momento, aquilo que me surge diante dos olhos, e que só não vê quem não quer, é um aumento exponencial de tentativas de calar vozes e de branquear todo um percurso de anos, muitos anos, de activismo da parte da comunidade LGBTI. Exemplos: a loucura no Brasil à volta do primeiro beijo gay numa novela de horário nobre, o rebaixamento das mulheres trans em que se sente cada vez mais uma transmisoginia, e um aumento de violência contra quem pertence a esta extensa comunidade.

Nesta minha reflexão sobre o que se passa no mundo, não estão de fora o crescimento dos preconceitos contra as pessoas LGB e Trans, e a inequívoca discriminação que daí advém. Exemplos: no país do mundo em que mais mulheres trans são assassinadas, o Brasil, viu-se esta semana o primeiro beijo entre dois homens numa novela de horário nobre e foi a puta da loucura. É como se tivesse vindo tudo ao de cima. O preconceito e o recalcamento de tanta gente, tanto lá como cá, leva as pessoas a supostamente conspurcarem um momento bonito com palavras sem argumentos, com a religião (como não podia deixar de ser) em que nós todos, pessoas trans, lésbicas, gays, bissexuais vamos todos arder no inferno e tal.

O que é natural no ser humano, afinal não o é? Qual é a diferença entre um beijo entre um homem e uma mulher, um homem e outro homem, uma mulher e outra mulher??? Epá, desculpem lá, mas já não há pachorra para tanta estupidez, ignorância e burrice. Por estas e por outras é que não andamos para a frente e, pelos vistos nunca iremos andar. Se as pessoas vivessem as suas vidas e não as dos outros, de certeza que estávamos todos muito melhor. E neste assunto, por aqui me fico, porque não me apetece dar demasiada importância a ignorância e preconceitos.

Transmisoginia. Ódio dirigido exclusivamente a mulheres trans. Já tinha escrito sobre este tema há uns tempos atrás, mas volta a estar na ordem do dia. Nos EUA assiste-se a vários casos de transmisoginia, que vão desde as mulheres trans continuarem a ser tratadas como lixo, em que em talkshows nós somos "trannies" (calão americano para qualquer coisa como "traveca"), o que é altamente ofensivo para qualquer uma de nós, a continuarmos a ter homens a desempenhar papeis de mulheres trans, seja no cinema, seja na televisão.
 
 

Ou seja, há imensas actrizes trans nos EUA. Podia fazer aqui uma lista. Mas quando há papeis de mulheres trans, são interpretados por homens. Para mim, há aqui qualquer coisa que não joga bem. Ou seja (novamente), se o papel for o estereótipo da mulher trans: prostituta, ninfomaníaca, cheia de maquilhagem, silicone e saltos altos, lá chamam uma actriz trans (desde que o papel seja pequeno também). Se for um papel diferente desse estereótipo põem um actor. Apenas uma grande questão: por mais que esse actor seja bom, por mais bem preparado que esteja, ele sente o que uma mulher trans sente? Ele sabe o que é ser-se trans? Ele vai mudar, por instantes, de identidade de género para saber o que nós sentimos, para saber como somos?

Por outro lado, há algumas mulheres trans que estão a dar cartas e que são um orgulho para todas nós, como Laverne Cox, que interpreta uma mulher trans na série "Orange is the new black" e Carmen Carrera, que além de actriz é modelo e tem excelentes hipóteses de ser o próximo "anjo" da conhecida marca de lingerie Victoria's Secret. Aliás, são estas duas mulheres trans que têm dado que falar nos EUA, desde que foram entrevistadas num programa de televisão onde a entrevistadora estava mais interessada em saber que genitais elas tinham entre as pernas do que com a importantíssima relevância e destaque que estas duas mulheres estão a ter em todo o mundo.

Por cá, nada de novo. Neste país à beira-mar plantado nós, mulheres trans, continuamos todas a ser vistas como aberrações, freaks e algo de que se tem que fugir, pois (parece-me) que isto se pega. As pessoas falam, falam muito e falam demais. Ninguém sabe a dificuldade que é para uma mulher trans arranjar um emprego ou um trabalho. Ninguém sabe como nós somos tratadas numa urgência de um hospital, ou após uma cirurgia. Ninguém sabe o que nós sentimos quando vamos tomar um café e, de repente, tudo fica em silêncio e se acende um holofote em cima da nossa cabeça. Só nós sabemos isso. Mas não custa nada tentar entender, tentar compreender. Tentar ser humano connosco, como nós tentamos ser com os outros.

Mas não. Cada vez há mais intolerância. Nós nem direito a amar temos. Por mim falo. Não tenho o direito a amar. Teria se "fosse mulher", como já me disseram várias vezes. Como sou "trans" sou merda, sou uma boneca insuflável, não tenho nem nunca terei os mesmos direitos que "as mulheres". Ou seja (pela última vez), eu não sou uma mulher. Sou algo que está num limbo. Tipo pareces mas não és, ou és mas não pareces, ou não és carne nem peixe, ou, ou, ou... Resumindo, e fazendo desta triste estória uma estória curta, eu, como mulher trans, não o sou, não tenho sequer o direito de ser, dizem eles.

Pois, mas era só o que faltava. Não passei por tudo o que passei na vida, e passo, para chegar agora e desistir. Isso nunca. Porque o que eu sou, sou. Não é ninguém que me vai julgar, rebaixar e muito menos dizer-me o que sou. Sou eu que me defino. Sou eu que sou. Não és tu, nem tu, nem o outro. Já fui muito tolerante. Agora não sou. Já respeitei quem nunca me respeitou. Agora não. Já tentei agradar, apenas na ilusão de que iria ser aceite. Agora não. Podem retirar-me todos os direitos que acham que eu tenho e não devia ter. Mas só por cima do meu cadáver. Porque nunca ninguém vai saber o que eu sou. Só eu.
 
---> Fotografia de Cristina Piçarra/2013