Lara's dreaming

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Localização: Lisboa, Portugal

Sou uma mulher transexual de Lisboa, Portugal, onde nasci e cresci. Neste espaço poderá encontrar pensamentos, reflexões e comentários inerentes à minha vida como mulher trans. Seja benvind@ ao meu cantinho.

segunda-feira, setembro 15, 2014

Identidade versus sociedade

Dei os meus primeiros passos no activismo trans em 2002. Fazendo parte de uma minoria dentro das minorias, achei sempre que fazia parte e era um imperativo de consciência lutar, apoiar e defender as pessoas, os seus direitos, e tornar as pessoas trans visíveis socialmente. Visíveis como todas as outras pessoas e com os mesmos direitos. 12 anos depois vejo que pouca coisa mudou, a nível social, e que até piorou em muitos aspectos.

A discriminação continua igual e os preconceitos até aumentaram. A ignorância e intolerância das pessoas é impressionante devido à conjugação terrível destas duas com a estupidez. Quem é ignorante pode entender as coisas, se o desejar. Quem é, além de ignorante, estúpido, não quer saber e mantém-se fiel aos seus preconceitos. Isto unido a questões de religião, questões políticas e uma péssima media, a um nível geral, leva a que se construam realidades sociais que não existem nem nunca existiram.

O meu corpo é meu e eu faço com ele o que desejo. Supostamente deveria ser assim, mas não o é. Para não o ser muito têm contribuído certos órgãos de comunicação social que, além de continuarem a transmitir uma imagem genitalocentrada das pessoas trans, envolvem questões clínicas (como cirurgias, tratamento hormonal, acompanhamento psicológico) no mesmo saco do direito que as pessoas trans com processo clínico têm de mudar o seu nome e género nos documentos legais. Isto leva o comum cidadão a achar (está no direito de achar o que quiser, não no direito de julgar, atenção) que as pessoas trans lhe "andam a roubar dinheiro dos impostos", pois as pessoas transexuais têm o direito (legítimo!) de fazer cirurgias no Sistema Nacional de Saúde (SNS). A transexualidade, como condição clínica que é - não uma doença! - dá-nos o direito a ser seguidos e a fazer as adaptações que desejamos no SNS. É um direito que nos assiste, como uma mulher grávida tem o direito mais que legítimo de ser acompanhada em tudo através do SNS (obrigada, Eduarda Santos, que desde há muitos anos falas de dois casos que são condições clínicas e que agora toda a gente compara). Nós, pessoas trans, pagamos os mesmos impostos (IRS, IRC, IVA, etc.) como toda a gente, logo temos o direito a termos os mesmos direitos que as outras pessoas. O que inclui, evidentemente, o usufruto do SNS.
 
Mas tenham calma, que o que este desgoverno tem feito a nível de cuidados de saúde tem dado os seus frutos, e neste momento poucas são as pessoas trans que lhe têm acesso, e os "escabrosos" números que fazem as parangonas desses órgão de comunicação não correspondem em nada à verdade. Quem tem dinheiro ou recorre ao privado ou vai para o estrangeiro, quem não tem, temos pena. É o estado geral da saúde em Portugal, que é terminal.
 
 

E clarifiquei aqui algumas coisas, ao de leve, para que se tenha a noção de que Portugal precisa de uma verdadeira lei de identidade de género, tal como a da Argentina, a mais avançada do mundo, neste momento. A nível europeu, a Dinamarca já deu o primeiro passo com uma lei muito semelhante, apenas com alguns pormenores que deverão ser trabalhados, mas no seu âmago é idêntica à lei de identidade de género argentina. E qual a grande inovação da lei de identidade de género argentina? É simples: é completamente despatologizante. As pessoas, as sociedades, o mundo, têm que perceber de uma vez por todas que nós não somos doentes. Nós nascemos assim. Nascemos com uma identidade de género que não corresponde ao nosso corpo, apenas isso. E isto não é doença em lado nenhum. Principalmente na Argentina.

Sendo assim, a lei argentina permite que uma pessoa se dirija a um notário, revele o seu desejo de alterar o nome e o género, o que é feito mediante o preenchimento de um impresso, apenas isso. Nada de médicos, psiquiatras, psicólogos, endocrinologistas, cirurgiões, etc., etc., etc. Depois de feita a alteração, a pessoa tem os seus documentos legais do género com que se identifica e tem acesso, através do sistema de saúde argentino, a tratamento hormonal, cirurgias, etc, se o desejar. Isto sim é respeitar-nos enquanto cidadãos, enquanto pessoas, enquanto seres humanos. É reconhecer os nossos direitos, é dizer que não somos doentes! Isto é reconhecer que nada é apenas branco ou apenas preto. É reconhecer que há uma imensa paleta de tons entre estes dois. É reconhecer a diversidade das identidades trans.

E, se por um lado tem havido a nível mundial uma maior exposição da transexualidade e de muitas outras identidades trans, tem subido ao mesmo tempo a morte por assassinato de pessoas trans. O que nos leva a outra questão: é perigoso dar a cara? Claro que é. Se aparece a tua foto numa revista ou jornal, ou o teu rosto num ecrã de televisão, ficas marcada. Mesmo nas redes sociais é perigoso. Em Portugal, este país de brandos costumes (já foi), a discriminação diária faz parte da vida da maioria das pessoas trans, especialmente das mulheres trans. E dos estereótipos nem vou falar, pois já muito escrevi sobre esse facto. (Aquela velha estória da mulher trans ser toda siliconada, usar minissaia, saltos agulha, ser obrigatoriamente trabalhadora sexual, desbocada, etc., etc., etc.).

Os próximos passos em Portugal terão que ser a despatologização das identidades trans e uma verdadeira lei de identidade de género. A Dinamarca já deu esse passo e abriu um precedente no velho continente. As pessoas têm que começar a ver-nos como pessoas e não a questionar constantemente o que temos no meio das pernas. Isso é um assunto íntimo e pessoal e só nos diz respeito a nós, em primeiro lugar, e a quem nós queiramos que saiba, em segundo. Nós não somos nem aberrações, nem freaks, nem o nosso corpo é propriedade pública. Aprendam isto que eu não duro sempre.
 
---> Eu na Marcha do Orgulho LGBT de Lisboa, 2014. Foto: PortugalGay.pt

quarta-feira, setembro 10, 2014

Segredos e mentiras

Ao longo da minha vida fui-me apercebendo, a pouco e pouco, que não deveria ser sincera nem honesta em relação não só ao que pensava, como também ao que sentia, às razões das minhas acções, e por aí fora. Como mulher transexual, que aos 14 anos se assumiu como rapaz homossexual, coloquei-me no fio da navalha em relação a todos aqueles que me rodeavam.

Ao me assumir como aquele que eu pensava que era - e aqui entram todas as confusões, dilemas e amarguras da adolescência - quem estava mais próximo de mim acabou por virar contra mim própria esse facto, que, apesar da importância relativa (eu sentia-me e sinto-me sexualmente atraída por homens), acabava por dar armas a quem achava que me podia prejudicar por esse facto. E prejudicaram. E humilharam. E agrediram. E acho que foi aí a primeira vez em que eu senti na pele que não podia, nem devia, partilhar com os outros, fossem quem fossem, quem eu era, o que pensava e o que sentia.

Se eu dissesse algo tipo, "aquilo é giro" em relação a uma roupa numa montra, por exemplo, vinha logo a boca do "vê-se logo que achas isso porque és gay". E este tipo de atitudes para comigo vinham das pessoas mais próximas, das supostamente "não-gays". Por isso comecei muito cedo a dar-me e a tentar conhecer melhor o meio gay. Curiosamente, e apesar de não ser uma atitude geral, a maioria dos homens gay com quem me dei (e dou) foram aqueles que me aceitaram como era (apesar de eu ser muito efeminada) e quem mais me apoiou quando finalmente me encontrei e me assumi como mulher trans.

Com os meus amigos gays eu podia assumir quem era, falar sobre mim, racionalizar e objectivar as fases por que estava a passar e graças a esses poucos amigos desenvolvi em mim o desejo de me assumir como quem realmente era, apesar do medo aterrador que eu tinha de quem eu era. Obviamente que houve discriminações mesmo dentro da comunidade gay, como ainda as há hoje em dia, mas eu tinha quem me protegesse, já que eu não me sabia proteger, e houve quem se aproveitasse disso para me humilhar e agredir de todas as formas que podia.
 
 

Quando, finalmente, saí do casulo e me assumi, confesso que o fiz de forma errada e com as pessoas erradas. Primeiro, porque me abri demais acerca de mim própria, como se não existissem limites nem segredos, nem coisas só minhas. Depois, porque essas pessoas usaram o facto de eu ser supostamente diferente (inferior) a elas para me achincalharem, gozarem e espalharem aos sete ventos que eu era "a modos que assim uma coisa esquisita". Perdi as rédeas da minha vida nesse triste e terrível período. Algumas dessas pessoas afastaram-se. Outras fui eu obrigada a afastá-las e a afastar-me. O ideal teria sido criar um segredo imenso em torno do facto de ser quem sou e mentir sobre quase tudo na minha vida. Afinal é isso que a maioria das pessoas faz.

Eu poderia tê-lo feito, mas não faz parte da minha natureza. Mas aprendi alguma coisa, apesar de pouca. Aprendi a afirmar-me, a mostrar os dentes. Aprendi que os meus segredos são isso mesmo, segredos. São só meus e de mais ninguém. Comecei a omitir. Mentir não, nunca. Não tenho essa necessidade, não sei mentir, não sei ser dissimulada como tanta gente que conheço. Omito quando tenho essa necessidade, quando alguém me pergunta algo que não quero responder, algo de que não quero falar, algo que me incomoda. Mas mentir não. Nunca fui convincente a mentir e, sinceramente, odeio mentiras. Não gosto de omissões, mas socialmente sou obrigada a fazê-las.

Neste mundo em que vivemos, temos que nos proteger o máximo que pudermos. Costumam falar na "selva que isto é", mas não, é mais "a podridão que isto é". As pessoas não respeitam nada nem ninguém, a mentira é uma forma de estar na vida e os segredos na realidade não passam de pormenores de vidas vazias que se vão enchendo com as frustrações dos outros. Não aprendi a defender-me como devia. Fui uma criança crédula, divertida, alegre (pelo menos até certa altura). Na adolescência aprendi o que é ser excluída total e completamente por se "ser diferente". Na idade adulta aprendi que tenho que guardar para mim o que penso, o que acho, e principalmente, o que sinto. Tudo isto têm que ser segredos. Se não o forem, as pessoas, pura e simplesmente, afastam-se de ti.

Mas, confesso, que sou um bocado burra. Porque "errei", ou seja, abri-me a certas pessoas e elas afastaram-se. E eu fiquei triste, confusa, irritada comigo própria. Mas não aprendi. Volta e meia aqui vai disto, revelo algo que sinto a alguém e o que levo em troca? Silêncio e afastamento. Se eu tenho dificuldade em lidar comigo e com os meus sentimentos e emoções, vejo que as pessoas que me cercam ainda têm mais. Muito raramente, por exemplo, vi um blog em que alguém se abrisse como eu o faço aqui. Para o bem e para o mal, eu sei. Mas também sei que este meu espaço tem servido para dar algum alento e tem fomentado alguma empatia com pessoas que passam ou passaram pelo mesmo que eu. Só por isso já vale a pena e tenho que agradecer a quem se manifesta e me dá o seu feedback.

Segredos, mentiras, enganos e maldade. É isto que me cerca. Não só a mim, bem sei. Dizem que é um mal dos "tempos modernos". E é com tudo isto que tenho que lidar no dia-a-dia, e continuar a aprender a deixar de ser burra e a contar, abrir-me com os outros em relação a mim. Não se consegue sobreviver se não se for fria, racional e aprender a ter a boca fechada. Vão já longe os tempos em que se podia ter o "coração ao pé da boca". Sendo assim, resta-me jogar o jogo como os outros o jogam. Resumindo, ser uma verdadeira "bitch".
 
---> Na foto duas mulheres simplesmente admiráveis: Marilyn Monroe e Marlene Dietrich (foto via facebook)