Lara's dreaming

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Sou uma mulher transexual de Lisboa, Portugal, onde nasci e cresci. Neste espaço poderá encontrar pensamentos, reflexões e comentários inerentes à minha vida como mulher trans. Seja benvind@ ao meu cantinho.

domingo, março 30, 2014

Filmes, papeis trans e genitalocentrismo

Ao longo dos últimos 20, 30 anos, muitos e muitas foram os actores e actrizes que desempenharam papeis de pessoas trans. Ultimamente, e devido ao facto de um actor ter ganho praticamente tudo o que havia para ganhar ao desempenhar um papel de uma mulher trans, várias questões se levantam: porque é que nunca uma actriz trans ou actor trans ganhou um Óscar, porque é que os papeis de pessoas trans nunca são desempenhados por pessoas trans, e porque é que, regra geral, os assuntos focados nestes filmes são sempre e invariavelmente, underground?

Há um "genitalocentrismo" nestes argumentos que além de me irritar profundamente, releva as pessoas trans novamente para "nasceu homem e agora é mulher" ou vice-versa, "agora é uma mulher de verdade" (porque realizou a cirurgia de correcção genital), além do eterno vislumbre das mulheres trans como trabalhadoras sexuais/ninfomaníacas, cheias de silicone e todos os estereótipos que se possa imaginar, aplicando-se o mesmo aos papeis de homens trans: parecem mulheres butch, comportam-se como cowboys dos idos 1800s e tal, e arranjam sempre maneira de porem o espectador na dúvida do que está a ver.

Tudo começa na cabeça do ou dos argumentistas e dos seus preconceitos, por mais interessante que a história seja de contar. Claro que depois passa pela pré-produção, realização e, muito importante, casting dos actores ou actrizes. E do que significa ser-se um actor ou actriz. Confesso que já li um pouco de tudo sobre a importância de serem pessoas trans a desempenhar papeis de pessoas trans, não me considero fundamentalista em nada, mas tenho que concordar que estes papeis deveriam ser desempenhados por pessoas trans.

A comparação que encontro e que muitas activistas usaram para defender as actrizes e actores trans foi: já passámos, felizmente, o tempo em que actores brancos pintavam a cara e o corpo para fazerem personagens de negros; também já passámos o tempo em que, nos westerns, os índios eram representados por actores brancos com a pele pintada, umas perucas ridículas e umas penas na cabeça. Acho que também já chegámos a um ponto em que temos actrizes e actores trans que podem representar homens e mulheres trans, sem recorrer a pessoas cisgénero.

Porque, além de um bom argumento (e houve-os e há-os de certeza), só uma actriz trans consegue um ponto de empatia com uma personagem trans, que uma mulher ou homem cisgénero, por melhor actor que seja, não consegue. Vi excelentes actuações de actores e actrizes cisgénero de pessoas trans, mas faltava sempre qualquer coisa. Na maioria das vezes soa a falso. Para mim, há três desempenhos que considero bastante bons, dos muitos filmes com temática trans que vi: Felicity Huffman em "TransAmerica", Hillary Swank em "Boys Don't Cry", e Jaye Davidson em "The Crying Game". Todos foram, curiosamente, nomeados para um Óscar, que destes três exemplos que dei, só Hillary Swank conseguiu com a personagem do homem trans Brandon Teena.
 
 
 
Não quero tirar o mérito a ninguém, nem dizer que A é melhor que B ou que C. Apenas que uma coisa é uma coisa, e outra coisa é outra coisa. E que, só nos EUA, há grandes talentos trans que nunca tiveram a oportunidade de serem escolhidos para papeis relevantes, ou até para papel algum. Candis Cayne, Calpernia Addams, Laverne Cox são apenas alguns dos nomes de três grandes actrizes trans que raramente tiveram oportunidade de ter um papel de relevo. Depois de Candis Cayne ter feito um papel na (fraca) série televisiva "Dirty, Sexy, Money", eis que, pela primeira vez, uma actriz, Laverne Cox, tem um papel de relevo e é elogiada por toda a crítica e grandes audiências na série "Orange Is The New Black". Em ambos os casos, temos duas actrizes trans a fazer o papel de mulheres trans.

Uma actriz é uma actriz e deve fazer que tipo de papel for. O outro lado da moeda. Sim, uma actriz que seja uma mulher trans também deve poder fazer o papel de uma mulher cisgénero. Mas não é, para mim, a mesma coisa. O tipo de experiência de vida de uma mulher trans confere-lhe um know-how que uma mulher cisgénero não tem. Nós, como eu própria já referi várias vezes aqui, nos meus posts, vivemos, pelo menos, duas vidas numa só. Uma mulher cisgénero não.

Agora, os (tristes), regra-geral, papeis atribuídos a actrizes e actores cisgénero sobre pessoas trans. Raramente não são genitalocentrados. Ou é a mulher trans que ainda não é operada e vai ser, ou é a que esconde que não é operada e quando se descobre cai o carmo e a trindade, ou é, no horrível e triste caso real de "Boys Don't Cry", o caso do homem trans que é violado e brutalmente assassinado quando se descobre que ele não é operado, ou seja, não nasceu com pilinha.

Para mim, o grande problema nos argumentos, especialmente na elaboração psicológica e física das personagens e o seu percurso de vida, é o preconceito e o esterótipo que os próprios argumentistas têm. Tirando o caso de "Boys Don't Cry", que é baseado numa história real, e mais um ou outro, a esmagadora maioria dos argumentos que incluem personagens trans são elaborados a partir de preconceitos e pré-conceitos do que é (ou devia ser) uma mulher trans ou um homem trans.

E a eterna obsessão que as pessoas a nível geral têm pelo que temos no meio das pernas é sempre revelado e exacerbado nestes filmes. Por mais que remexa na minha memória, não encontro papeis de mulheres trans que não fossem genitalocentrados. E já não há pachorra, sinceramente. O nosso, meu corpo, não é propriedade pública. Ninguém tem o direito de violar, sim violar, a minha privacidade e intimidade com perguntas sobre a minha genitália. Já bati no ceguinho e vou continuar a bater, porque parece que as pessoas não se tocam: o meu corpo é meu e só a mim me diz respeito o que quer que tenha a ver com ele.

Nós somos mulheres e homens. O que pode interessar aos outros é quem nós somos, o que temos para dar, o nosso talento, a nossa opinião, o nosso choro, a nossa alegria. Já chega de se imiscuírem na nossa intimidade e fazerem um esforço para nos conhecer como somos e acima de tudo de nos respeitarem, independentemente do que temos no meio das pernas. Porque não um filme com personagens trans que explore a riqueza do ser humano e não caia no eterno e sinistro interesse genital?

E aqui embatemos na transfobia. A transfobia mata. Mas a transfobia não nos mata só o corpo. Antes disso mata-nos a alma.
 
---> Foto: Laverne Cox

sábado, março 15, 2014

As aparências desiludem

O que interessa são as aparências. Não aquilo que tu és, mas aquilo que pareces ser. Nunca, como hoje, o mundo gira à volta desta aparente dualidade. Se eu sou linda, mas burra que nem uma porta ondulada, acabo por ser valorizada por essa suposta beleza e não pela pessoa, pelo ser humano que sou. Se eu tenho a ousadia de me mostrar como sou, sou total e completamente ostracizada.

Este paradigma da aparência versus essência aplica-se a tudo. O falso moralismo, a cretinice, a hipocrisia, a ignobilidade estão cada vez mais presentes e até ultrapassam o simples facto de eu ser uma e aplicam-se a todos. E isto viu-se ontem na Assembleia da República.

Algo tão natural como ter pais - e pais aqui são, além de ter um pai e uma mãe, ter duas mães ou ter dois pais - é negado a um enorme segmento da população por criaturas que não têm nem consciência, nem vergonha na cara e muito menos coluna vertebral.

Desde sempre que deveria ser normal (odeio esta palavra, mas não encontro outra) e natural duas mães terem bebés, dois pais terem bebés, como é "normal" um pai e uma mãe terem. Todo o "complicadíssimo" processo que leva a isto é tão simples como respirar. Faz parte da natureza humana querer-se ter filhos. Não é a nossa orientação sexual que define isso. E este direito inalienável a qualquer pessoa, qualquer casal, deveria estar consagrado naturalmente e na constituição de qualquer país.



É incrível e totalmente absurdo ainda estarmos a falar de direitos humanos em pleno século XXI. Como o meu direito a ser quem sou, a exprimir-me como quero, sem ser humilhada, achincalhada, e tratada como uma aberração só porque sou uma mulher trans. Nasci assim, assumi e assumo quem sou, sofri bullying a minha vida toda e continuo a sofrer. A diferença agora é que o bullying que me aplicam se reveste de formas diferentes, mas não menos cruéis e humilhantes que aquelas de que eu era vítima na altura do liceu e por aí fora.

Sendo uma mulher madura nada muda. E se muda, muda para pior. Não há nada pior que o ser humano, que a sua crueldade, egoísmo e pura maldade. Seja por que motivo for, há sempre alguém pronto a tratar-me como "o senhor", a rir-se de mim com a cumplicidade de outra quando entro no café, a olhar-me de cima a baixo com desdém quando vou ao supermercado. É que eu não sou, para esta sociedade de merda, tão pessoa, tão mulher, tão digna como qualquer outra.

Fala-se muito de discriminação. Pois, mas devia-se falar mais. É que a discriminação reverte-se de muitas formas e o bullying diário é uma delas. E muito mais em pessoas que, de alguma forma, alteram o seu aspecto para que este se coadune mais com aquilo que elas são. Não que "pensam que são", como já me disseram. Ou outra igualmente boa, "você é gay ou mulher, mulher?". Amigo, gay é um homem que gosta de homens. Se eu sou mulher, sou mulher, não gay, né? É que mulher gay soa assim um pouco estranho.

E este bullying reflecte-se ainda mais quando a nossa aparência "não é passável", como se diz muito no Brasil. Eu não sou passável. Partindo do princípio que "ser-se passável" é passar por mulher, eu não sou. Eu sou mulher, não quero passar por mulher. Mas cada cabeça sua sentença, e aquelas mulheres trans que têm a sorte de serem "passáveis" acabam por, não só terem a vida muito mais facilitada, como acabam por não ser vítimas de bullying diário.

Ninguém as olha nos olhos e lhes dá a entender que tem nojo delas. Ninguém lhes estende a mão para lhes dar um aperto de mão, ou lhes pergunta se têm mesmo mamas ou se aquilo é um soutien almofadado. Obviamente que isto não acontece, porque elas "parecem mesmo mulheres". Ok, entendi a mensagem há muito tempo.

Numa sociedade que regride, em vez de progredir, digo que, infelizmente, este tipo de situações são "normais". Já me habituei a todo o tipo de disparates, desde ditos a atitudes, a olhares. O que não quer dizer que aceite isso, que me cale, ou que baixe a cabeça. Mas é assim, sendo que o bullying vem sempre mais da parte dos homens do que das mulheres cisgénero, já para não falar das próprias mulheres trans que discriminam as outras.

O estereótipo da mulher trans tarada, super-sexy, toda siliconada continua e pelos vistos vai continuar a ser a forma que esta sociedade doente tem de tolerar pessoas que nasceram com uma pequena diferença. O tipo de homem que se interessa por uma mulher trans também é um estereótipo: regra-geral casados ou comprometidos com mulheres cisgénero, nunca assumindo um papel na estória, e que desejam inversão de papéis. Sim, porque nós só servimos para sexo. As outras, as "mulheres de verdade" é que têm direito a casar-se com eles, a viverem com eles, a serem amadas. Nós somos "os animais sexuais".

Resta-me estar sossegada no meu canto e dar-vos a todos e todas um grande "bem vindos ao maravilhoso século XXI".
 
---> Make Up Artist, cabelo e fotografia: Pedro Miguel Silva

domingo, março 02, 2014

Vulnerabilidade

A nossa própria vulnerabilidade surge-nos perante os olhos mais cedo ou mais tarde na vida. E, quando se vive praticamente duas vidas no espaço de uma, vemos isso com mais clareza. As coisas não acontecem só aos outros. Quem nós julgávamos ser uma coisa, provavelmente não o é. A eterna mutabilidade dos outros e de nós próprios é sempre motivo para uma reflexão.

Sempre me questionei sobre os meus instintos. Será que eu estava a sentir algo real ou apenas fruto da minha imaginação e desejo? Será que aquelas pessoas que eu julgava serem uma coisa afinal eram outra? Nós mudamos mesmo, ou vamo-nos revelando com o tempo? Todas estas questões e muitas mais rodopiavam e rodopiam na minha mente, na tentativa de encontrar respostas a questões que, mais do que existenciais, fazem parte do nosso crescimento interior e se reflectem na forma como nos damos aos outros.

As pessoas revelam-se com o tempo. Disso não tenho dúvidas. Há aquelas que em pouco mais de cinco minutos te apercebes de quem e como são, e há aquelas em que este trabalho de observação demora anos. Não quero simplificar aqui algo tão intenso e complexo como a alma humana, o ser-se humano, mas há pessoas mais simples de descodificar do que outras, isso todos sabemos. É uma experiência que toda a gente tem.

E, no caso de uma mulher trans, como eu, as pessoas revelam-se, algumas mudam mesmo, quando nós "supostamente transitamos" de um género para o outro. Há quem te aceite e respeite e se mantenha a teu lado, mas a esmagadora maioria desaparece e há até quem passe para o outro passeio quando se vai cruzar contigo na rua. E a noção real de que a tua vida muda começa aqui. Tens um processo interno a decorrer, mas na prática, a atitude dos outros em relação a ti faz-te ver a realidade tal e qual como ela é.

A mim fez-me ver quem eram as pessoas realmente importantes para mim, na minha vida real. Algumas acompanharam a minha transição, outras surgiram durante, poucas vieram depois. É como se fôssemos leprosas nos tempos do antigamente. Não me interessa que discordem, pois a realidade é mesmo esta. E, pior, pessoas que deveriam saber perfeitamente pelo que estamos a passar, outras pessoas trans, essas são capazes de nos discriminar, humilhar e maltratar ainda mais do que os outros.
 
 

Fala-se muito de uma suposta "comunidade trans". Não existe em Portugal e duvido que algum dia exista. Pois parece-me que, no caso das mulheres trans, estão todas mais preocupadas em ser "mais femininas" e "mais mulheres" do que as outras, indo buscar os estereótipos e o exacerbamento do que é ser-se mulher e do que é aparentar-se com uma mulher. Sinceramente nunca consegui entender isto, este tipo de atitude muito bem. Se uma mulher trans é operada diz que é mulher ou mais mulher do que as mulheres trans que não o são? Chego, então, à conclusão que ser-se mulher é ter-se genitais femininos e ter um look feminino. Ser-se não passa praticamente nada pelo que se sente e se sabe que se é. Passa por aparências quase exclusivamente.

Visto por este ponto de vista, então eu não sou mulher como estas são. Eu não as discrimino, como não discrimino ninguém, mas sou alvo da discriminação delas. O respeito que deveria haver, o espírito de comunidade que deveria existir não há, pura e simplesmente porque umas discriminam as outras! Caramba, apesar de todas termos experiências de vida diferentes, confesso que não entendo este tipo de atitudes, que muitas vezes, são de uma falta de respeito, de educação, de formação, que a mim me choca.

Chego à conclusão que o ser humano não consegue viver sem competição. Diariamente tem que se competir com os outros para sermos nós próprios. E, realmente as pessoas mudam. Regra-geral para pior. Mas esta é apenas a minha opinião baseada na minha experiência de vida. As pessoas, por razões que muitas vezes desconhecemos, passam de nos tratar bem a tratar-nos abaixo de cão. E inventam supostos factos sobre a nossa vida que parecem estórias mirabolantes saídas de um filme. E fazem-nos mal, prejudicam-nos, e nós não podemos fazer nada. Nada a não ser fecharmo-nos.

As coisas acontecem todas na nossa vida. Essa mania que as pessoas têm que tudo só acontece aos outros é uma forma de tentarem vencer o terrível medo que isso lhes aconteça também a elas. Cheguei a uma fase na minha vida em que já posso fazer um pequeno balanço. Aquilo que consideramos e sabemos ser mau está aqui ao nosso lado, como está ao lado dos outros. Aquela sensação de invencibilidade, de super-poderes que eu tinha até há uns anos, já não a tenho. Sou vulnerável, sinto-me vulnerável. Porque nós sentimos tudo na vida, mesmo que o tentemos negar. E o que sentimos mais é o que dói. Precisamente porque é a dor que nos marca mais.

Seja a dor de perder alguém, seja a dor de estar doente, seja a dor da solidão. Estou vulnerável, mas na realidade sempre o fui. Não tinha era sequer a noção disso. Mas a vida, com os factos a decorrerem fez-me ver que eu era como os outros em tudo, até na dor. Diferente, mas igual. Porque toda a gente sente a dor. E, infelizmente, a vida é mais feita de dor do que de alegria, ou momentos de felicidade.

E esta vulnerabilidade fez-me mudar. Revelo-me apenas a quem quero. Mostro apenas aquilo que desejo. Mas a Lara que escreve estas linhas é já muito diferente da Lara que escrevia há quatro, cinco anos atrás num outro blog qualquer. Estou mais consciente do que me rodeia. Tento dar mais importância ao que realmente a tem. Já não me deslumbro por nada. Porque, tal como referi acima, as aparências não são nada. Não se consegue viver de aparências se queremos ser verdadeiros connosco próprios.

Não descobri nenhuma verdade. Cresci e descobri mais questões. Deve ser a isto que chamam de maturidade.
 
---> Make Up Artist, Cabelos e Fotografia: Pedro Miguel Silva