Lara's dreaming

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Sou uma mulher transexual de Lisboa, Portugal, onde nasci e cresci. Neste espaço poderá encontrar pensamentos, reflexões e comentários inerentes à minha vida como mulher trans. Seja benvind@ ao meu cantinho.

segunda-feira, janeiro 04, 2016

Transfobia à Portuguesa

Em resumo do ano de 2015, muito se tem escrito sobre a visibilidade das pessoas trans (principalmente mulheres) que foi muita. Principalmente nos EUA, onde surgiu Caitlyn Jenner, entre a visibilidade que já tinham Laverne Cox, Janet Mock e Carmen Carrera, por exemplo. Mas toda esta mediatização trouxe ao de cima também o pior: a alta taxa de homicídios sobre pessoas trans, a alta taxa de suicídio das mesmas, e todo o tipo de discriminações de que esta população é alvo. E em Portugal, como é? Pois é, neste "jardim à beira-mar plantado" as coisas são bem mais negras do que parecem. E as pessoas trans vivem uma transfobia diária, que as desgasta e destrói.



Portugal é um país de "brandos costumes", como se costuma dizer, o que engana quem parte do princípio que isto implica que a aparente hospitalidade, ar caloroso e falsa simpatia não escondam imensa homofobia, e ainda mais transfobia. Falo por mim, que a sinto na pele todos os dias, em que as pessoas não falam à minha frente, mas quando o fazem é em tom depreciativo e provocador, como tratar-me como "senhor" ou sempre no masculino, rirem-se quando passo, e mandarem bocas entre-dentes como "olha o travesti", ou "o homem com mamas". E de certeza que mais mulheres trans sentem o mesmo olhar de desprezo que eu sinto, e os gozos por parte de homens e mulheres, novos e velhos.

É importante ter a noção de que a transfobia existe e muito em Portugal, mas é uma transfobia silenciosa. As pessoas tentam não te confrontar, falam nas tuas costas e as palavras e mensagens transfóbicas passam de boca em boca. Para a esmagadora maioria das mulheres trans, o apoio da família é quase imprescindível. Mas, infelizmente, para a maioria de nós, esse apoio ou é mínimo ou não existe. No meu caso, quando contei à minha mãe que era transexual, ela ficou furiosa e perguntou-me porque não lhe tinha contado mais cedo. Sim, porque segundo ela, aí ela e o meu pai poderiam "ajudar-me", pondo-me a fazer um tratamento de masculinização. O meu pai deixou praticamente de me falar, tratava-me o pior possível, e chegou ao ponto de, apesar de eu já não viver na casa deles, me proibir de lá entrar vestida de mulher e principalmente de saias! Quanto aos meus irmãos, pouco ou nada há a dizer, pois a história repete-se. Fui rotulada como travesti, no mais depreciativo que isto tem, e todos eles (pai, mãe e irmãos) sempre fizeram questão de me agredir como podiam, sendo que negar a minha verdadeira identidade era a melhor forma de o fazer, e por isso sempre me trataram no masculino, mesmo após a minha transição e a minha mudança legal de documentação do masculino para o meu verdadeiro género, o feminino.

A nível laboral, sempre fui discriminada, antes, durante e depois da transição. Há muito boa gente que critica as mulheres trans por "caírem" na prostituição, mas ninguém fala da verdadeira razão para isso acontecer. A discriminação, a transfobia que sofremos quando procuramos um trabalho dito "normal" é tanta, que a maioria de nós, apenas para sobreviver é obrigada a fazer trabalho sexual. Sim, porque não nos resta mais nada quando todas as portas se fecham! No meu caso, consegui com muito esforço um trabalho que eu gostava há uns bons anos atrás. Aparentemente, não era discriminada, quase não havia sinais, a não ser olhares de lado, alguns risos e aquela sensação de que estão a falar de nós nas nossas costas. Estava numa fase crucial da minha transição, e aquele ambiente não me ajudou nada. Tirando umas três ou quatro pessoas com quem me dava, de quem eu gostava e presumo que gostavam de mim, era pura e simplesmente posta de lado, e tinha que trabalhar mais do que os outros, sem ter os devidos créditos.

Através de uma pessoa que trabalhou no mesmo local que eu, no período de dois anos em que lá estive, tive uma imagem bem mais nítida dos preconceitos, discriminação e má-língua que se passava nas minhas costas. Tal como nos EUA, Brasil ou qualquer outro lado, o facto de eu frequentar o WC das mulheres era extremamente mal-visto pelas pessoas, que achavam que "não devia ser permitido". Soube também que existiam piadas de mau-gosto e os tais risos quando eu passava e uma pessoa que eu admiro imenso e adoro foi discriminada e gozada por se dar comigo e por irmos tomar café. No meio disto tudo, fui obrigada a meter baixa, porque adoeci gravemente na altura. Houve reclamações por esse facto e o comentário de que eu só estava empregada porque "ficava bem" em termos de diversidade. Por aqui se vê que conseguir um trabalho e mantê-lo sendo uma mulher trans é tudo menos fácil e se entende que a esmagadora maioria de nós seja trabalhadora sexual ou por lá tenha passado. 

A nível das relações humanas, sejam de amizade, trabalho ou amor, tudo se desvanece na enorme transfobia generalizada numa sociedade que se diz e se tenta mostrar avançada, mas que continua quase igual ao que era nos tempos da ditadura. De relações amorosas já escrevi várias vezes, mas nunca é demais lembrar e focar bem que nós, mulheres trans, nunca somos vistas como "mulheres". Somos outra coisa qualquer, que serve para sexo, mas que não serve para se ter um relacionamento sério, para constituir família, etc. Somos objectos sexuais, só. Somos consideradas fetiches, criaturas da noite, freaks, aberrações da natureza. São-nos negados os mais ínfimos direitos de termos uma vida familiar (e não só) "normal", apenas porque somos como somos.

Em jeito de esperança, apesar de ténue, espero que 2016 traga algo de melhor para a vida das pessoas trans em Portugal. Já chega de tanto preconceito, de tanto ódio, de tanta discriminação, de tanta transfobia. Convém lembrar Gisberta, que foi brutal e horrivelmente assassinada por um grupo de miúdos há dez anos atrás, faz em Fevereiro. Que a transfobia que matou Gisberta não se repita e que tod@s nós lutemos para que este mundo seja um melhor lugar para viver. Sei que estas esperanças não serão, muito provavelmente, transformadas em realidade, mas não se pode desistir. 

A transfobia corrói, magoa, mata. Nunca se esqueçam disto. 

---> Foto © Pedro Medeiros, Lara Crespo, Cais do Ginjal, 2014