Lara's dreaming

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Sou uma mulher transexual de Lisboa, Portugal, onde nasci e cresci. Neste espaço poderá encontrar pensamentos, reflexões e comentários inerentes à minha vida como mulher trans. Seja benvind@ ao meu cantinho.

segunda-feira, abril 28, 2014

Chega!

 
 
O que mais me faz impressão é a frieza das pessoas. Não o facto de serem fechadas, mas o facto de serem estanques. Ninguém, chego eu à conclusão, tem uma aprendizagem do que é carinho, do que é partilha, do que é preocupares-te com alguém.

Vivem todos numa bolha que se encheu através do seu umbigo e as aflições, tentativas de desabafo, carícias, carinhos, beijos, toques, são-lhes repugnantes, não conseguem conceber a ideia de que isso lhes aconteça a eles.

Não há uma cultura de carinho, de toque. As pessoas não se tocam. Se se tocam isso deve querer dizer alguma coisa. Porquê? Não posso tocar numa pessoa porque, pura e simplesmente, gosto dela, dar-lhe um beijo, dizer-lhe uma palavra agradável, um elogio?

Não. Isso não existe. Como a eterna treta do Homem, quero dizer Humanidade, ser um animal social é o maior embuste de sempre. O Homem é mau, frio, capaz das maiores atrocidades mesmo a quem, supostamente deveria gostar, estimar. Famílias não existem. Existem pessoas que, por acaso, se entendem bem na sua frieza. Mas não há, nunca há, empatia real, amor, carinho.

Porque tu tens que estar aí, senão estás a entrar no meu espaço, no meu domínio. Independentemente de seres “do meu sangue”, “amigo”, “namorado”, whatever. Se ultrapassas a linha e vens com tretas tipo tocar-me e dar beijinhos, ou algo que tal, é porque queres alguma coisa.

Ou seja, não posso dar um beijo ou fazer um carinho numa pessoa que gosto sem querer nada em troca? Tudo isto é muito triste, mas é a realidade dura e pura. E aquelas pessoas que nascem diferentes, como é o meu caso, e cometem o duplo erro de serem socialmente excluídas (porque sou uma mulher transexual) e sentem carinho e ternura por quem gostam, sem quererem nada em troca, são maltratadas, humilhadas mais do que cães abandonados e espezinhadas a vida toda.

Foi para esta merda que eu nasci? Agora, sinceramente, foi? Se foi para isto, para este mundo de cabras e cabrões egoístas, egocêntricos, frios e com o mal a florescer em cada poro, então não sei porque nasci. Aliás, nem sei o que faço aqui ainda.

Há relativamente pouco tempo desejaram-me a morte. Pode ser que, naturalmente, ou não, lhe(s) faça a vontade. Assim já podem enfatizar ainda mais com as vossas línguas viperinas e conspurcadas o quão “princezinha” eu fui e que sempre me armei em vítima.

Querem uma vítima? Querem achincalhar-me ainda mais. Força. Por mim, sinceramente, FUCK YOU!

quinta-feira, abril 17, 2014

Fiel a mim própria

O que eu sou para ti tu não és para mim. A maior parte da nossa vida funciona desta forma. Em mais um período de profunda reflexão, surgiram-me acontecimentos de há dez anos atrás. Foi na altura em que, supostamente, eu tinha tudo, mas afinal não tinha nada.

Fala-se muito e escreve-se demais. Supõe-se que as coisas na vida de uma mulher trans se passam de certa forma, mas só quem o é sabe o que se passa. A vida familiar é extremamente complicada na maioria dos casos, a amorosa nem se fala e a nível laboral, muito poucas conseguem fugir ao estigma da prostituição.



Como já escrevi aqui várias vezes, a minha família foram e são as muito poucas pessoas com quem me cruzei na vida e que empatizaram comigo e eu com elas. Algumas mantém-se lá, outras não. Mas, como sabemos, cada um tem a sua vida, e as circunstâncias desta afastam-nos quase sempre. Principalmente se nós (eu) formos mulheres transexuais. Família de sangue é algo de que nunca falei e não é agora que o vou fazer, também porque não há nada a dizer. A minha família real é a que está no meu coração.

A nível amoroso é algo equivalente há uns 50 anos atrás. Os preconceitos são os mesmos, a discriminação a mesma, o estigma o mesmo. Os mais que batidos clichés do homem que se interessa por uma mulher trans (como eu) é gay, todas as transexuais são trabalhadoras sexuais, ninfomaníacas no mínimo, sermos tratadas como "os" e não "as", tudo, tudo se mantém. Das duas uma, ou tens muita sorte na vida (sim, porque também é preciso ter sorte), ou passas mais de metade da tua vida a lutar contra estes preconceitos e estupidamente à espera ou à procura que te apareça um homem diferente, que pense de maneira diferente.

Há dez anos atrás acabou o único "relacionamento" que tive que durou mais que um ano. Coloquei relacionamento entre aspas, porque ter alguém com quem quase não se conversa, com quem nos encontramos duas ou três vezes por semana e basicamente só para sexo não se coaduna com o que eu considero ser um relacionamento amoroso sério. Ah, tirando o facto de ele não sair à rua comigo, de ir para os copos com os amigos aos fins-de-semana, ah, e nunca ir ter comigo quando havia jogo do Sporting. Pois é, até nisso o amor pela bola era mais forte.

Isto até podia dar vontade de rir, se eu não me tivesse sentido tão "estranha" no meio daquela relação sui generis. E que só durou o que durou porque o sexo entre nós era muito bom, tenho que reconhecer. E não, ele não é gay, é hétero, e não, não me tratava como "o", aliás, nunca teve um acto falhado e sempre me tratou como a mulher que sou. Pelo menos numa coisa aquela abécula acertou. Eu gostava dele. Não vou dizer que o amava, porque não podes amar quem não conheces. Eu não o conheci porque ele não o quis. Tudo aquilo teve sempre uma morte anunciada. Eu é que não queria ver. Era demasiado inexperiente. Ainda via tudo cor-de-rosa. Era parva e naive.

Se fosse hoje, nunca me sujeitaria, que foi o que na realidade aconteceu, a uma coisa deste tipo. Sexo não é tudo, até pode ser muito pouco, ter alguém para não estar sozinha não faz parte do meu feitio, e hoje em dia não admito as faltas de respeito que ele teve comigo na altura. Sinceramente, ter vergonha de mim??? Ter vergonha de sair comigo à rua??? Ter vergonha que os amigos e família soubessem??? Pois é. É mesmo assim. E nada disso mudou. Pelo que vejo e observo, hoje em dia as coisas continuam literalmente iguais, quando não são piores.

Nós, mulheres trans "não passáveis", enfrentamos um tipo de discriminação ainda mais forte e diferente daquelas que são "passáveis" e autênticas capas de revista. Somos travestis, homens com mamas, quer dizer, quando não perguntam se não é um soutien almofadado, somos "os". E nenhum homem hétero quer ter um relacionamento com uma mulher assim. Sim, porque essa dos gays se interessarem por nós, além de ridículo, já ninguém aguenta. É assim: um homem gay sente-se sexualmente atraído por outros homens, certo? Pois, e eu, nós, somos mulheres, ok? Logo, uma mulher trans não terá relacionamentos com homens gay, certo? Pronto, a ver se entendem.

Bem que eu e muitas outras mulheres trans tentamos desconstruir estes preconceitos e pré-conceitos, mas é extraordinariamente difícil, pela forma como estão enraizados e têm passado de geração em geração. E esse homem, meu ex-qualquer-coisa não fugia à regra. As coisas acabaram e cada um seguiu o seu caminho. Não me arrependo de me ter relacionado com ele. Acho que, no fundo, ele até é uma boa pessoa. Mas era mais aquilo que nos separava do que aquilo que nos unia. E ele era limitado demais, limitava-se a ele próprio, como a esmagadora maioria das pessoas, não só homens faz.

Pensar nisto tudo agora traz-me alguma tristeza. Porque conheci várias pessoas ao longo da minha vida, conheço hoje em dia algumas pessoas, mas a minha transexualidade é um impedimento para algo mais se desenvolver. Mesmo que um diga que não, que gosta de mim como sou, que me aceita e me respeita como sou. Isso não é, de todo, verdade. A verdade, no meio disto tudo, é que socialmente, familiarmente, amorosamente e por aí fora, vou sempre ser vista como alguém que nem devia existir. Que devia morrer de vez e ser esquecida. Esta é a realidade.

Não há príncipes encantados, não há famílias cor-de-rosa, e a sociedade é uma merda. Pois é. Agora temos duas opções: ou vivemos com isso, ou não. Tento sempre dar alguma esperança e alento a quem me lê, mas agora torna-se cada vez mais difícil. Porque não há perspectivas, porque o ódio contra nós é cada vez maior, a transfobia cresce a olhos vistos.

No meio de tudo isto, resta-me a mim e a vocês mantermo-nos fiéis à única coisa que realmente vale a pena: nós próprias.
 
---> Make Up Artist, Cabelos e Fotografia: Pedro Miguel Silva (2012)

terça-feira, abril 08, 2014

Transfobia: reflexões sobre uma pandemia

trans·fo·bi·a
(trans[exual] + -fobia)
substantivo feminino
Repulsa ou preconceito contra o transexualismo ou os transexuais.

"transfobia", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, http://www.priberam.pt/dlpo/transfobia [consultado em 08-04-2014].



Começo este post por colocar uma palavra que, apesar de não estar nos dicionários de Língua Portuguesa há muito tempo, faz parte da minha vida e de tanta gente como eu. Aliás, sempre fez parte, a partir do momento em que me assumi como mulher transexual.

Falar de transfobia daria para um livro daqueles bem calhamaços, pois são tantos os casos, desde o bullying transfóbico, à agressão verbal, física e, em grande parte dos casos em assassinato brutal.

Começou-se a falar de transfobia em Portugal há muito pouco tempo. Praticamente, só a partir do tristemente mediático caso de Gisberta Salce Júnior, mulher transexual selvaticamente torturada, espancada, violada e assassinada por um grupo de rapazes na cidade do Porto, em 2006 é que esta palavra foi entrando no nosso quotidiano.

Com o alastrar dos partidos de direita e, principalmente, de extrema-direita na Europa e um pouco por todo o mundo, a transfobia tem vindo a aumentar a olhos vistos. Numa sociedade que se desejaria em evolução, estamos perante um horrível vislumbre do passado. O ódio. Ódio contra tudo o que é supostamente diferente, e as mulheres trans são, sempre, um alvo a abater.

Basta ver o Brasil. País próspero, enorme, e em que não há um dia em que uma mulher trans não seja assassinada. Neste momento o Brasil encontra-se na frente da contabilidade de mortes por transfobia. Na frente pelas piores razões. Infelizmente. E esta transfobia existe também aqui, apenas suavizada pela aparente "aceitação" de um povo que sempre foi conhecido pelos seus "brandos costumes". Mas, cada vez mais, deixa de ser assim. Os costumes já não são brandos, e a transfobia e todo o tipo de preconceitos e discriminações aumenta e torna-se cada vez mais visível.

A suposta evolução humana chegou a um ponto em que todos os valores são postos em causa, sendo que aqueles que mais protegidos deveriam ser, não o são. Os nossos direitos, os direitos humanos. E os grupos sociais mais pequenos, como o caso da minoria trans, são os que mais discriminados são. Por outro lado, existe cada vez mais uma visibilidade trans que não existia há pouco tempo atrás. Se, por um lado a transfobia aumenta, por outro várias pessoas trans tornam-se alvo de atenção mediática pelos melhores motivos.

Seja no Brasil, realmente um país de contrastes e contradições, seja nos EUA, por exemplo. No Brasil, várias mulheres trans têm dado nas vistas a nível internacional como as modelos Lea T., Felipa Tavares e Carol Marra, actrizes trans começam a conquistar o mercado das novelas, apesar dos pequenos papeis, como Maria Clara Spinelli e Patrícia Araújo. Nos EUA, cada vez mais as mulheres trans se tornam visíveis e assumidas em todo o tipo de cargos, desde actrizes a modelos, passando por políticas, senadoras, professoras, etc.

Ou seja, apesar da transfobia reinante, muitas de nós conseguem alcançar lugares e patamares sociais como quaisquer outras mulheres. Obviamente que nenhuma delas teve um caminho cor-de-rosa, pois não há grande glamour na vida de uma mulher trans. Pelo menos na minha. Todas elas tiveram que batalhar o dobro do que uma mulher que o nasceu biologicamente para chegarem lá. E, curiosamente, muitas são tão sinceras nas entrevistas, como eu o sou, tanto no dia-a-dia, como naquilo que escrevo.

Confesso que admiro cada vez mais Laverne Cox, actriz norte-americana, que numa entrevista em que se falava da série em que ela participa, "Orange Is The New Black", assumiu que não se considera "passável" como mulher. Fiquei espantada e orgulhosa pela sua sinceridade. Nunca tinha lido ou visto uma entrevista com uma mulher trans em que alguma assumisse tal coisa. O que me colocou a questão do ser "passável" como mulher.

Esta expressão implica que nós temos que ser identificadas como mulheres biológicas quando olham para nós. Mas isto também implica que ser-se "passável" pode ser qualquer tipo dentro do imenso espectro de mulheres que nasceram mulheres que existe. E Laverne orgulha-se de ser uma mulher trans e mostra-nos que não temos que ter vergonha, que tentar ser algo que não somos, apenas para nos auto-identificarmos como mulheres. Somos como somos e assim, podemos chegar onde quisermos. Basta querermos e lutarmos por isso.

E, para ela e tantas mulheres trans negras numa América racista e xenófoba, deve ter sido com toda a certeza bem mais difícil do que para outras mulheres trans. O "passável" significa para nós, pessoas trans, algo muito difícil, mas também muito importante. Pelo menos sempre o foi para mim. Mas a vida, as experiências por que passamos, moldam-nos. Modificam-nos. E, se olham para mim e não vêem uma mulher, não é um problema meu, é um preconceito dessa pessoa. Sou como sou, "passável" ou não, e as pessoas têm que me aceitar e respeitar como sou.

Mas a transfobia também nos molda. Obriga-nos a ver o mundo e as pessoas com outros olhos. E a olhar por cima do ombro quando vamos na rua. A transfobia está a marcar cada vez mais as pessoas trans, a discriminação diária esgota qualquer um. E quando vivemos numa sociedade não-inclusiva, e em que mesmo a comunidade LGB não nos inclui como o deveria fazer, mais afastadas dessa sociedade e dessa comunidade nós ficamos.

Ser-se uma mulher transexual não é vergonha nenhuma. Ser-se transfóbico, isso sim, é.