Lara's dreaming

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Sou uma mulher transexual de Lisboa, Portugal, onde nasci e cresci. Neste espaço poderá encontrar pensamentos, reflexões e comentários inerentes à minha vida como mulher trans. Seja benvind@ ao meu cantinho.

quinta-feira, outubro 29, 2015

Felicidade? O que é isso?

Nós temos sempre a expectativa de que um dia vamos ser felizes, como se a felicidade fosse um estado de alma e não pequenos momentos em que sentimos um êxtase de bem-estar. O problema é quando não sentimos nem um desses momentos. Será que aí eu posso falar de felicidade? Claro que não.

Sonhei ter uma vida “normal” como qualquer outra mulher. Isto muito antes da minha transição, já sonhava com ter um companheiro, filhos, uma casa junto à praia (sempre a calma relaxante do mar) e um trabalho que me preenchesse. Nada disso aconteceu, aliás, nem por sombras. Só consegui ter uns dois ou três supostos “namorados”, que tinham vergonha de mim, de andar comigo na rua, e eu servia como objecto sexual dentro de quatro paredes bem calafetadas. Para mim, na minha estúpida ingenuidade, aquilo era carinho, talvez até amor.

Amor? Nada sabia sobre tal coisa e ainda hoje nada sei. A ingenuidade é que se foi, esbateu-se e eu tenho a perfeita noção de que fui cúmplice de uma farsa a dois. Deixei que acontecesse o sexo na esperança de que um dia algum deles me amasse. Mas amar uma mulher trans como eu? Eu não sirvo para amar, sirvo para ser fodida. E o passar do tempo mostrou-me isso. Que a felicidade que eu tanto almejava era uma fraude, um conto de fadas de uma mulher com mente de miuda que achava que o príncipe encantado existia.

Depois fui vendo que a minha carência natural era tão grande que faria qualquer coisa para não estar sozinha comigo mesma. Criei laços afectivos com várias pessoas, mas chego à conclusão que não vale a pena apostar nessas relações. As pessoas são demasiado egoístas, só pensam nelas e magoam-te deliberadamente se não correspondes de alguma forma ao que elas querem de ti. Mas houve algum momento de felicidade? Não, nenhum. Não sei o que é isso. Aliás, acho que já não quero saber sequer.



Depois vêm as chamadas redes sociais. Locais onde supostamente falas, comunicas com pessoas amigas e conhecidas e incrementas relações com essas pessoas. Bullshit. Não há comunicação, não há contacto, não há troca. Posso passar horas com o facebook aberto e nem uma única pessoa vem falar comigo no chat, ou põe um like numa publicação minha. E isto é um reflexo da vida real. O meu telemóvel recebe uma chamada duas ou três vezes por ano, e umas sms de vez em quando. No meu caso, a realidade e a ficção são uma e a mesma.

Nasci sozinha, nunca tive atenção positiva por parte dos meus pais, não tive amigos na infância. Foram surgindo algumas pessoas na minha vida que desapareceram praticamente todas quando me assumi com mulher transexual. Das que ficaram, cada uma tem a sua vida, cá ou no estrangeiro, mas ninguém se preocupa realmente como estou ou deixo de estar. Não sinto carinho, amor, por parte dos outros. Sinto distanciamento, frieza, e o eterno “orienta-te, pá, que isto é cada um por si”.

Felicidade é uma palavra bonita para os poetas. Deve ser bom sentir momentos de felicidade. Deve ser bom ter uma vida preenchida por carinho e amor. Deve ser bom ter companhia nesta passagem por este calvário chamado mundo. Mas, como dizia o outro, nasces só e morres só. E essa é a mais pura das verdades. E essa é a minha verdade. Vou deixar a felicidade e o amor para os poetas escreverem lindas poesias. Eu vou seguindo o meu caminho. Sozinha.

sexta-feira, outubro 09, 2015

Crónica da morte

Há uma altura da vida em que te apercebes que és um ser finito. Em que tens a real noção de que a vida acaba. Não só a dos outros, a que vais assistindo, mas que a tua própria vida vai acabar e passarás para um novo estádio, ou não, mas que vais largar esta casca em que nasceste e que tudo o que fizeste, quem amaste, cada pormenor, cada momento, se perdem nas areias do tempo.



Quando vives duas vidas numa só, como é o meu caso, a sensação de que consegues ultrapassar tudo é quase sempre presente. Afinal, vivi metade da minha vida como uma pessoa que não era e estou a viver agora quem sou na realidade. Mas esta realidade, como qualquer outra, é finita, E só agora tenho essa perfeita noção.

As pessoas, no seu geral, tendem a "imaginar" que a vida de uma mulher trans, como eu, é algo estranho, misterioso, que sou uma freak, uma aberração, e por aí fora. Essa limitação que vejo nos outros faz-me confusão, pois nunca fui assim, nunca pensei o mundo e as outras pessoas assim. No fundo, só queria ter uma vida chamada de "normal", como qualquer outra mulher. Mas a sociedade em que vivemos não permite que eu viva a minha vida como uma mulher dita "normal".

Eu sou diferente de qualquer outro ser neste mundo, como qualquer um de nós. Mas sou igual no ter querido casar-me, ter filhos, uma casa, etc., etc., etc. No fundo, até sou mais "normal" do que muitas que dizem e acham que o são e não são transexuais. Sendo assim, caio no fundo do poço da certeza absoluta de que nunca vou conseguir ter uma vida dita "normal". 

Vou ser sempre discriminada. Vai haver sempre preconceitos. Vão sempre haver humilhações. Vão sempre haver agressões. Vai haver sempre assédio. Estou moral e emocionalmente certa do que digo, por tudo o que passei ao longo destes últimos 10, 15 anos. E agora tenho a certeza absoluta de que sou finita. De que morro um pouco todos os dias. E que o meu coração murcha muito ao ver as atitudes e "expressões várias" de pessoas que conheço, ou que pensava conhecer.

Fui obrigada a deslocar-me para o limbo. Não sou nada, nem deixo de ser nada. Assim não chateio nem incomodo ninguém. Não porque eu o queira, mas porque os outros me mandaram para aqui. Uma pessoa como eu sou não pode viver calada, em silêncio. Não pode viver amordaçada. Não pode viver como se estivesse já morta. Preciso de ar, de emoção, de sorrisos e lágrimas, de sentir. Agora já não há dor. Estou preparada para ir. 

Não consegui atingir nenhum dos objectivos a que me propus. Não sei se sou uma falhada, se não, se foi por minha única e exclusiva culpa e responsabilidade (de certeza que há quem ache que sim), se foi metade isto e metade a incapacidade e falta de vontade de os outros me ajudarem. Sim, ninguém vive sozinho, E ou te encaixas numa sociedade ou não. E a tua vida e as tuas vivências e experiências dependem exclusivamente disto.

Não me encaixei, obviamente. Também sou uma pessoa difícil de encaixar num padrão. Nem gosto de padrões sequer. E apercebi-me que vou morrer. É um certo choque estranho este da noção de que vais desaparecer da face da terra. Tenho medo de morrer, como acho que qualquer pessoa tem. Principalmente medo do sofrimento que leva à morte. Espero ter uma morte indolor. Era só o que queria. Sim, porque dores já tenho muitas, pelo menos que seja poupada na morte.

Podia ter escrito um post, uma crónica toda pomposa, toda cor de rosa, mas não me apetece. Nem estou nessa onda. Essa onda já passou há muito tempo. Apeteceu-me escrever sobre a morte. Ou parte do que ela significa: o fim de mim. Para quem não gostou, temos pena. Esses que fiquem descansados, que eu, realmente, não sou eterna.

---> Foto: eu no Alentejo, Julho de 2015.