Lara's dreaming

A minha foto
Nome:
Localização: Lisboa, Portugal

Sou uma mulher transexual de Lisboa, Portugal, onde nasci e cresci. Neste espaço poderá encontrar pensamentos, reflexões e comentários inerentes à minha vida como mulher trans. Seja benvind@ ao meu cantinho.

quarta-feira, junho 22, 2011

Lavar a alma: transfobia misógina

Fiz 40 anos há uns dias atrás. Nesta altura tudo me vem à cabeça, desde memórias distantes de criança, a coisas muito recentes. Fala-se muito ultimamente sobre outro assunto, a "linda" estória do polícia canadiano que afirmou que as mulheres "puxam" pela violação ao se vestirem como umas "sluts" (vadias, putas, ordinárias). Quando li isto, nem podia acreditar que em pleno século XXI ainda existissem este tipo de mentalidades (pelos vistos mais comuns do que eu pensava). O que me leva à questão de: quem é que tem alguma coisa a ver com a forma como me visto, com a forma como me identifico, quem dá o direito seja a quem for de me julgar?

A obrigação dos outros era respeitar-me acima de tudo, independentemente de como me visto, do que pareço ou não, como eu os respeito a eles. Infelizmente, não é num mundo assim que vivemos, e cada dia que passa, vejo que não pertenço, em definitivo a este mundo, a este planeta.

Se, no caso das mulheres biológicas se põe a questão da constante misoginia e falta de respeito, comigo, que sou transexual põe-se isso e mais algumas coisas. E aqui entra o factor que as americanas e brasileiras adoram esmiuçar, o ser-se ou não "passável". Ou seja, passar-se ou não por uma mulher biológica.

Obviamente que quem tem dinheiro e está disposta a isso pode sempre fazer uma Face Feminilization Surgery (Cirurgia de Feminilização Facial), dar uns retoques com colagénio e botox, raspar a maçã de adão, fazer depilação definitiva no rosto (laser ou electrólise) e por aí fora. Quem está desempregada como eu, que não tem fonte de rendimento e que vive de ajudas, resta-lhe raspar a cara com uma lâmina, porque já não tem sequer dinheiro para fazer depilação facial com cera. Claro que também não fiz nenhuma das cirurgias e/ou tratamentos mencionados atrás, o que faz de mim uma, obviamente "não (ou nunca) passável".

E quase todos os dias em que saio à rua vejo isso. Olham para mim - curiosamente são mais elas que olham - e gozam, riem-se, mandam umas bocas. Sim, afinal eu não sou "passável", não nasci biologicamente mulher, e elas devem sentir-se melhor e mais mulheres por me rebaixarem. E com eles poucas são as diferenças. Apenas uma: como tenho mamas, sempre olham mais para aí e desviam a atenção do rosto e pescoço. A transfobia misógina está instalada, tanto entre eles, como entre elas.

Só que estou farta de ser humilhada, pisada e espezinhada. Fui-o ao longo da minha vida toda, quase por toda a gente, mas agora chega. E existiram várias gotas-de-água, sendo que a última foi no dia da marcha do orgulho LGBT, em Lisboa, quando fui deixar uma amiga ao autocarro, visto que eu estava doente e não podia ir. De um café junto à paragem, na zona onde eu nasci, cresci e sempre vivi até há uns anos atrás, uma palhaça de uma empregadeca de mesa olha para mim, começa a rir-se a bandeiras despregadas ao mesmo tempo que apontava na minha direcção, o que chamou de imediato as atenções para mim. Não contente, foi chamando gente - mulheres e homens que por ali estavam - e numa rua cheia de gente em pleno sábado à tarde, fui humilhada como há muito não era. Era tudo a rir, a apontarem para mim, a mandarem bitaites que eu fiz questão de esquecer.

Calmamente, deixei a minha amiga no autocarro, virei as costas e fui para casa dos meus pais. Triste e magoada com isto e com outro tipo de situações que me têm acontecido, desabafei com a minha mãe. Tentando ser compeensiva, porque ela não entende o que eu sou, aconselhou-me a usar uma "basezita" para disfarçar a marca da barba, e não usar decotes para que não se note muito o peito. Tadinha, eu compreendo que ela apenas me queria (e quer) reconfortar e proteger, mas não será nunca assim, nem ela tem o poder para o fazer, como quando eu era criança. Mas valeu a tua intenção, mãe.

"Sluts"? Mulheres transexuais "passáveis"? Mas o que é isto? Quer dizer, não tenho o direito a ser respeitada, a dizer não, a dizer basta? Era só o que mais faltava! Identifico-me com uma "slut", sei que não sou"passável" nem bonita, mas não é por isso que não vou continuar a ser eu. Sim, porque é mais fácil mudarem vocês do que eu! Já chega desta transfobia misógina!

sexta-feira, junho 03, 2011

Lavar a alma: Gisberta e o "bullying"

Ultimamente, não se tem visto outra coisa nos telejornais e em todo o tipo de média que não casos do recentemente chamado "bullying". Ele é a rapariga violentamente agredida por duas mais velhas, é o fuzileiro espancado pelos colegas, é mais uma miúda agredida e colocada dentro de um contentor de lixo por colegas da escola, enfim, parece que de repente se acordou para algo há muito adormecido, e que, quer queiram quer não, sempre existiu.

E o bullying constante e eterno que uma mulher transexual como eu sofre? Atenção que não estou a menosprezar a importância e gravidade de todos estes casos e de muitos outros de que não se sabe, mas convém deitar aqui umas achas para a fogueira, relembrando o infeliz caso de Gisberta Salce Júnior, mulher transexual tal como eu. E eu penso muitas vezes que no lugar dela poderia estar eu. E que o bullying que ela sofreu durante três longos dias e que culminou com a sua trágica morte poderia ter sido evitado. E que me pode acontecer o mesmo.

Para quem não se lembra, Gisberta foi violentamente agredida por um grupo de adolescentes, que além da porrada, a violaram, enfiaram-lhe paus pelo anús, tentaram estrangulá-la, tentaram atear fogo ao seu corpo pois pensaram que, após três dias de tortura, ela já estava morta, mas como não o estava, decidiram atirá-la para um poço cheio de água no prédio em construção onde ela "morava". Gisberta morreu afogada.

Gisberta poderia ter morrido de qualquer uma das doenças que minavam o seu enfraquecido corpo. Com o HIV veio a tuberculose, a hepatite B, a fraqueza geral, a incapacidade de reagir. E essa matilha de animais (peço desculpa por ofender todos os bichos, mas não me ocorre outra palavra) matou-a sem piedade que ela tantas vezes pediu ao longo dos três longos dias, e todos escaparam sem uma condenação, pois segundo o auto, "foi a água que matou Gisberta".

E é neste mundo que vivemos. Gisberta era uma mulher transexual. Talvez se não o fosse as coisas tivessem sido diferentes. E eu penso no bulying que sofro desde criança. E o futuro assusta-me. Tenho medo de sair sozinha à rua. Antigamente enfrentava com mais desfaçatez esse medo. Hoje em dia a minha consciência da verdadeira natureza humana face ao desconhecido faz-me temer pela minha integridade física.

Não tenho vergonha nenhuma nem pudor em afirmar que é um risco enorme ter-se o azar de nascer transexual numa sociedade como esta. Lembro-me de ter uns quatro, cinco anos, e de ir brincar para a rua com outras crianças da minha idade. Provavelmente por já ter um tipo de comportamento diferente dos outros meninos, fui selvaticamente espancada por todos eles, que eram uns cinco, e lembro-me nitidamente que um, em particular, me deitou as mãos ao pescoço, me fez cair de costas no chão, arrancou-me carne dos ombros e cara e mordeu-me com toda a força. Não sei como, consegui fugir, e em lágrimas abracei-me à minha mãe e irmã, que estavam em casa e me trataram dos ferimentos, enquanto gritavam pela janela com eles, que zombavam e mim e me chamavam nomes.

E cenas deste género foram-se repetindo ao longo da minha infância e adolescência. Fui constante e permanentemente vítima de bullying. Isso fez de mim uma pessoa marcada. Fiquei mais desconfiada, mais fria, mais insegura, mais medrosa. E isso transformou-me. Não o posso negar. Nunca me vou sentir como pertencendo a algum sítio ou local. Nunca vou sair para a rua com total segurança. Nunca me vou sentir eu com toda a força da palavra "eu".

"Elas não matam, mas moem", já lá diz o antigo ditado. E o que julgava ter ultrapassado ao longo dos anos deixou marcas. Muitas cicatrizes naquilo que sou. Mas não me vão pisar mais como o fizeram ao longo de quase toda a minha vida. Se cheguei aqui, vou-me esforçar por continuar. Mas não serei a mesma que fui. Não serei. Nunca mais.