Sempre soube que era diferente das outras crianças nascidas biologicamente do sexo masculino. Fui-me tentando entender até chegar a uma fase em que, apesar da confusão na minha cabeça, tinha a certeza de que não era um homem. Em 2000 comecei a minha longa e penosa viagem por uma transição que foi um pesadelo.
Decidi fazer um processo clínico de transexualidade num hospital público. Comecei a ter consultas de psiquiatria/sexologia em 2000. O chefe de equipa e responsável precisamente pela área da psiquiatria e sexologia foi das pessoas mais asquerosas e mal-formadas que já conheci em toda a minha vida. Basta dizer que, quando terminei o meu processo clínico fiz queixa formal dele, o que, obviamente, não deu em nada.
Tive consultas com essa criatura e um psicólogo/sexólogo durante mais de dois anos. Entretanto, e depois de eu muito insistir com o chefe de equipa, lá fui enviada para o endocrinologista para começar o tratamento hormonal, o qual não comecei, porque o psiquiatra não deu autorização, pois eu, como ele fazia questão de frisar, "não me vestia como uma mulher", "não parecia uma mulher", "não me maquilhava, nem usava saltos altos nem saias". Acho que isto, além de dizer tudo, é mesmo sem comentários, certo?
Nos sete longos e penosos anos que calcorreei da minha casa até áquele hospital, nunca o psiquiatra me tratou no feminino. Eu era o tal e coiso, não a Lara, como eu estava farta de lhe dizer e afirmar. Ao final de cerca de dois anos e como aquilo não andava nem para trás nem para a frente, decidi interromper as consultas por algum tempo (também tinha uma consulta de três em três ou de quatro em quatro meses). Aí surgiu o meu primeiro contacto com a Jó Bernardo, a quem muito devo, pois além de me ajudar a perceber-me, foi ela que me impulsionou a assumir-me como eu era e sempre tinha sido: uma mulher.
Comecei a fazer tratamento hormonal cá fora, mas aconselhada e seguida por uma jóia de pessoa, uma médica endocrinologista que era fantástica no trato e no auxílio. Regressei às consultas no hospital algum tempo depois, já a fazer tratamento hormonal e com um aspecto físico já ligeiramente diferente. O psiquiatra continuou a tratar-me no masculino. Afinal, "eu não parecia uma mulher".
Nessa altura, e como eu já fazia tratamento hormonal, ele foi obrigado a mandar-me para o endocrinologista da equipa, muito a contragosto. Fiz análises e comecei a ser seguida por esse médico.
E os anos foram passando e nada. Fiz todo o tipo de exames, coisas que eu nunca ouvi alguém ter feito num processo desta natureza, como electroencefalogramas (EEGs) e um TAC ao cérebro. Passei um mês a fazer testes psicológicos para despistarem se eu era maluca da cabeça. Fiz a análise ao cariótipo, fui fazer a minha segunda opinião com uma psiquiatra/sexóloga em Coimbra nos HUC.
Entretanto, eu já começava a dar sinais de depressão, cansaço extremo e falta de paciência.
Até que chegou o dia em que ele (o chefe de equipa) já não tinha mais desculpas para adiar a fase de relatórios e o meu processo completo foi para a Ordem dos Médicos para avaliação. Esta foi positiva e passei para o cirurgião. (Calma, que está quase a acabar esta pseudo-odisseia ridícula).
O cirurgião era uma boa pessoa lá no fundo, apesar das notórias limitações em perceber o que é, na realidade a transexualidade, e tinha conceitos tão ultrapassados, que eu nem sequer me dei ao trabalho de discutir ideias com ele.
Como com o tratamento hormonal o meu peito não cresceu nada, ele optou por me colocar expansores por detrás do músculo peitoral, para assim criar caixa e depois se colocarem as próteses de silicone. Assim foi. Depois da cirurgia tudo parecia bem, ia às consultas com ele e enchia um pouco mais os expansores, até que descobri que havia algo errado num peito. Pois havia, tinha um expansor furado. Fui operada pela segunda vez para retirar esse e colocar outro.
Fiquei de tal forma traumatizada por me ver já com uma mama e sem a outra do mesmo tamanho, que adiei a colocação das próteses uns anos. Finalmente, em 2013 fui operada, já por outro cirurgião, que me retirou os expansores e me colocou as próteses mamárias de silicone.
Resumindo: fiquei com duas cicatrizes horríveis e enormes por baixo do peito e no local errado, devido a culpa do primeiro cirurgião, o meu peito ficou duro e nada parecido com aquilo que eu imaginava que seria, ou seja, parecido com o toque de umas mamas naturais, e o tamanho não é o que eu queria.
Estou em depressão profunda há anos. Tomo ansiolíticos todos os dias e só assim consigo suportar a minha vida. Nada correu como eu esperava e ter nascido uma mulher transexual não foi uma benção, não foi uma coisa normal, foi uma maldição para mim. É um estigma que tenho que carregar enquanto cá andar, e quanto a isso nada há a fazer.
Não contei tudo isto para desanimar ninguém que deseje fazer um processo clínico. Não contei isto para que dissessem que sou uma coitadinha, uma desgraçada, ou que me armo em tal. Contei tudo isto para que as pessoas tenham a noção de que nascer-se transexual deveria ser tão natural como nascer-se cissexual. Infelizmente, e por razões exteriores também a nós, a nossa vida é dificultada ao máximo por família, supostos amigos, médicos e afins. É preciso ter-se muita força, mas também muita sorte para se conseguir o que se quer e seguir em frente. Foi por isto que eu decidi escrever o martírio que passei, para que outras pessoas trans não tenham que passar pelo mesmo.
É urgente despatologizar a transexualidade e as identidades trans. É urgente pôr a Ordem dos Médicos e os seus predicados fora da vida das pessoas transexuais. É urgente podermos decidir sobre nós, sobre os nossos corpos. É urgente criar uma noção de respeito pelas pessoas trans numa sociedade que tem duas palas e só vê o que tem em frente. É mais do que urgente acabar de vez com a transfobia. Obrigada por quem leu estas palavras. Espero, sinceramente, que sirvam para alguma coisa.
---> Foto © Pedro Medeiros, Lara Crespo, 2014